Painéis comunitários: a disputa pela verdade da pandemia nas favelas cariocas
Originalmente produzido por Alexandre Magalhães, Caíque Azael e Palloma Menezes e publicado na Revista Horizontes Antropológicos, em 2021.
Resumo
O presente artigo descreve e analisa a experiência dos Painéis Comunitários de mapeamento da Covid-19 organizados por moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Tais painéis são dispositivos que quantificam a extensão e intensidade da pandemia nesses territórios, apresentando arranjos diversos que envolvem dados produzidos por moradores, serviços de saúde ou órgãos públicos. Mobilizados a partir da inconsistência ou falta de informações sistematizadas sobre a pandemia em seus territórios, os painéis operam uma disputa pela verdade da pandemia nas favelas, num contexto de desvalorização das políticas de combate ao vírus e negacionismo. A tensão produzida com os painéis chama a atenção para a existência de tais territórios no tecido urbano e as relações que o poder público sustenta em cada local. Para compreender esse processo, partiremos de dados compilados pelo Dicionário de favelas de Marielle Franco, notícias de jornal, sites dos coletivos promotores desses painéis, bem como falas públicas de moradores dessas localidades.
Palavras-chave: favelas; painéis; verdade; pandemia
Introdução[editar | editar código-fonte]
A pandemia do coronavírus demandou ações específicas para seu conhecimento e enfrentamento em todo o mundo. As medidas de distanciamento físico (também chamadas de “isolamento social”) têm sido apontadas como a principal forma de impedir o avanço da pandemia ao mesmo tempo em que pesquisadores buscam, em diferentes campos do saber, respostas sobre o que e como fazer. Mais da metade da população mundial passou por períodos de quarentena e, segundo os dados oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020), mais de 100 milhões de pessoas foram contaminadas até o mês de fevereiro de 2021, com cerca de 2,2 milhões de mortes no mesmo período. Os números apresentados pela OMS ao mundo são um compilado dos dados oficiais de cada país, divulgados pelos governos locais a partir de diferentes estratégias de contabilização. Contudo, diante de possibilidades materiais, estratégias e políticas de combate ao novo coronavírus muito diferentes em cada país, tais números têm sido, frequentemente, objeto de controvérsias acerca de sua fidedignidade e capacidade de representar a realidade “de fato” da pandemia.
As incertezas sobre os dados de mortalidade e contágio em função da Covid-19 dificultam (ou literalmente boicotam) a implementação de políticas eficazes para impedir a disseminação do novo coronavírus por diferentes territórios. Tais incertezas, contudo, não surgem pela incapacidade de profissionais da saúde, pesquisadoras(es) e ativistas em mapear e oferecer soluções para a situação, mas de um arranjo político que, ao menos no caso de sociedades como a brasileira, opera a partir de duas lógicas combinadas: de um lado, a lógica da escassez (Freire, 2019), caracterizada pela oferta sempre limitada de serviços e bens de cidadania e, de outro, o que Magalhães (2020) chama de política da precarização, ou seja, uma ação deliberada de exposição da vida de determinadas populações.
Tal como afirma Freire (2019), a escassez como um modo de governo se constitui a partir de ações que produzem e reproduzem a ideia de que os recursos públicos existentes seriam ´limitados` e ´escassos`. Assim, as dinâmicas de sua distribuição e utilização se tornariam dependentes tanto do estabelecimento de prioridades quanto do equilíbrio entre necessidades individuais e políticas coletivas. Como ressalta o autor: “a escassez não é uma espécie de ´dado bruto` da realidade, mas sim fruto de um constante e excessivo trabalho de elaboração e reforço de uma ideia” (2019: 51-52). Por sua vez, de acordo com Magalhães (2020), a política da precarização se caracteriza por ações governamentais que tendem a levar a um aprofundamento das situações de vulnerabilidade social de determinados grupos. Isto se verifica, por exemplo, quando diferentes prefeituras reduziram os investimentos em saúde (especialmente no que se refere à rede de assistência básica) mesmo num momento de emergência sanitária. Nesse sentido, são ações promovidas diretamente pela administração pública que criam condições que, em nosso caso, facilitaram a propagação do vírus e dificultaram o acesso amplo e adequado às redes de saúde e assistência social, o que expôs ainda mais certas populações à possibilidade de infecção.
Além disso, avaliamos que a política da desinformação (Araújo; Mallart; Gaudenzi, 2020) empreendida no Brasil é uma das principais formas de atuação governamental no contexto da pandemia. Mais que questionar os efeitos da pandemia, estimulam-se práticas que vão contra aquelas orientadas por especialistas . No caso do município do Rio de Janeiro, além dos relaxamentos precoces nas medidas de distanciamento físico, uma série de mudanças nas formas de se contabilizar e notificar os casos e as mortes pelo novo coronavírus foram implementadas no decorrer da pandemia, ao mesmo tempo em que ativistas e trabalhadores da saúde mobilizam-se de forma autônoma para produzir seus próprios mapeamentos e estratégias para combater o vírus. As tentativas de mudanças no modo de contabilizar a pandemia na cidade do Rio e no Brasil se deram, justamente, no momento em que a atuação das autoridades públicas responsáveis era questionada por inúmeros atores. Nessa angulação, é possível dizer que há uma disputa intensa sobre a verdade da pandemia, especialmente nas favelas. Tal disputa se constitui entre, de um lado, formas de ação que ignoram deliberadamente sua existência, o que se verifica pela interdição de dados oficiais e pelo desinvestimento nas práticas de contenção do novo coronavírus, e, de outro, práticas de enfrentamento próprias, como é o caso dos mapeamentos elaborados por coletivos comunitários (os painéis comunitários de casos e óbitos).
As possibilidades de contenção do novo coronavírus passam pelo conhecimento de sua incidência e seu desenvolvimento em cada local. Uma das formas apontadas por autoridades médicas e sanitárias para entender as dinâmicas próprias da pandemia é a realização de testagens em massa. Contudo, o Brasil é um dos países no mundo que menos realizou testagens, apresentando uma média 63,2 mil testes para cada milhão de habitantes - situando-o na 64ª posição. Entre os estados brasileiros, o Rio de Janeiro foi um dos que menos testou mesmo seis meses após a OMS declarar o avanço do novo coronavírus como uma pandemia.
Nessa configuração, marcadores sociais, territoriais e raciais constituem uma linha de corte que informa quem terá acesso aos testes e a formas de tratamento adequado e quem apenas obterá cuidados precários (quando os tiver). Em diferentes levantamentos reunidos pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco (WIKIFAVELAS, 2020), podemos observar que a população negra apresenta as maiores taxas de letalidade por covid-19 no Brasil, percentuais que se repetem nos índices de letalidade policial e encarceramento, delineando traços de uma sociedade que é constituída pelo racismo estrutural.
É diante de tal realidade que ativistas e coletivos de favelas e periferias, articulados a trabalhadores da saúde e instituições de pesquisa, organizaram-se para construir ações de mapeamento dos casos e elaboração de políticas específicas para esses territórios. Como apontam Fleury e Menezes (2020), tais ações utilizam novas tecnologias e redes de articulação pré-existentes nas favelas para ações de diagnóstico e prevenção como, por exemplo, na constituição de painéis e campanhas. Tais iniciativas e arranjos de mobilização funcionam como verdadeiros operadores de escala (GPCT, 2020), isto é, como formas de ampliar e dar ressonância às ações locais, bem como de contornar os efeitos perversos da política da desinformação.
Os números, com seu poder de inscrever uma realidade (Latour e Woolgar, 1997) nos apoiam na compreensão do mundo e qualificam nossa intervenção para a solução de diversos problemas, pois nos aproximam do universo que é pesquisado e trabalhado. O agenciamento dessas plataformas aqui em consideração busca orientar a identificação da extensão do novo coronavírus nesses territórios (diante da falta deliberada de informações oficiais qualificadas) e também denunciar a política da precarização e a lógica da escassez que limitam o acesso dessa população aos cuidados necessários.
O trabalho feito na construção dos painéis comunitários tensiona as verdades estabelecidas pelos governos que tentam tornar invisíveis a realidade das favelas. Os painéis assumem, então, o lugar de dispositivos de contra-inscrição, questionando a verdade hegemônica e produzindo tensões a partir da articulação de redes territoriais. A disputa pela verdade, como nos lembra Foucault (2006), é uma disputa pelas formas de organização e regulação da vida. Nessa configuração, portanto, os painéis parecem emergir em um campo de disputa em torno da verdade da pandemia nas favelas e periferias. Nesse sentido, seguindo Motta (2019), podemos pensar os painéis como a expressão de algo (a verdade da pandemia) e também como produtores de determinada realidade (das favelas no contexto da pandemia).
Ao mobilizar estatísticas próprias, essas plataformas de coleta, tratamento e divulgação de dados sobre a disseminação do novo coronavírus em favelas e periferias permite a criação de uma nova entidade – a “pandemia nas favelas” – que torna possível a constituição de um problema coletivo em relação ao qual podemos nos referir e agir (Motta, 2020), já que por uma cadeia de transformações (Thevenot, 1995), que operam por meio de traduções, negociações, convenções e codificações, certa condição experienciada por determinadas pessoas (e em suas conexões com as coisas) ganha contorno mais nítido e passa a figurar como um assunto que demanda atenção pública .
Portanto, as perguntas que orientam as reflexões neste artigo são: como se dá a disputa pela verdade da pandemia nas favelas? Quais jogos de luz e sombra que incidem sobre a visibilidade/invisibilidade da pandemia nesses territórios? O quanto isso pode nos informar sobre a realidade da pandemia na cidade e em alguns de seus territórios? O que as disputas sobre a realidade da pandemia e das favelas nos revela sobre as possibilidades da vida nesses territórios?
Para sustentar nossas reflexões, tomaremos como ponto de partida os dados produzidos pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco entre os meses de março e agosto de 2020 acerca dos diferentes aspectos da pandemia nas favelas cariocas, especialmente sobre os painéis comunitários de monitoramento do novo coronavírus nessas localidades. Notícias e relatórios publicados no mesmo período também auxiliam na reconstrução das linhas que contornam o problema da subnotificação, seu contexto e efeitos nas populações. Além disso, mobilizaremos igualmente as argumentações formuladas por moradores e moradoras de favelas que participaram da série de lives intitulada “Favelas, pandemias e cidadanias” organizada pelo Dicionário de Favelas em parceria com a Universidade da Cidadania e o Urbano - Laboratório de Estudos da Cidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
INDETERMINAÇÃO, INVESTIGAÇÃO E DISPUTA PELA VERDADE DA PANDEMIA NAS FAVELAS[editar | editar código-fonte]
O início da pandemia do novo coronavírus foi vivenciado por grande parte dos moradores de favelas como uma situação indeterminada. Ninguém sabia ao certo os desdobramentos que tal situação poderia gerar e os impactos na vida cotidiana dessa população. Em função do modo como historicamente foram tratadas pelas autoridades públicas, os moradores já previam que qualquer ajuda governamental demoraria a chegar, não chegaria ou chegaria precariamente. Por isso, muito rapidamente, lideranças de diferentes localidades reuniram esforços para, primeiramente, entender o que estava ocorrendo em seus territórios de moradia. Nesse sentido, empreenderam um “processo de investigação” (Dewey, 1938) com o objetivo pragmático de orientar suas ações.
Podemos recuperar parte desse processo a partir das trajetórias constituídas e relatadas por moradores de duas favelas cariocas na série de lives mencionada anteriormente: Amanda Mendonça14, do Complexo da Maré e Igor Soares15, do Morro do Borel (ambas da Zona Norte). Um dos aspectos que eles inicialmente mencionaram foi o fato de que, em um primeiro momento, a população das favelas em que moram aderiu ao distanciamento físico recomendado pelas autoridades médicas e sanitárias. De acordo com eles, tal situação mudou após os pronunciamentos do Presidente da República que minimizavam os impactos e mesmo a existência do novo coronavírus.
A gente teve uma certa adesão. Era muito perceptível. (...) Às sextas-feiras, assim que foi anunciado o isolamento pelo governo do estado, a gente percebia um esvaziamento das ruas do Borel. (...), mas aí depois disso a gente teve o pronunciamento do Bolsonaro de falar que o coronavírus era só uma gripezinha. (...) As pessoas estavam mais reclusas, mas em um determinado momento deixaram o isolamento e passaram a ficar mais nas ruas. (Igor Soares, morador do Morro do Borel) São as primeiras duas semanas de março onde as pessoas de fato têm um comportamento diferente, elas seguem minimamente um protocolo de isolamento por essa questão das informações nos meios de comunicações convencionais. E logo após o decreto do presidente as pessoas começam a flexibilizar antes mesmo de qualquer outra flexibilização, elas começam a sair mais. (Amanda Mendonça, moradora do Complexo da Maré).
Esses dois trechos nos possibilitam compreender como o pronunciamento do presidente da República, conformada pela negação do que estava acontecendo, produziu como efeito concreto o afrouxamento no isolamento social por parte dos moradores de favelas. Foi diante deste quadro que moradores de diferentes localidades decidiram iniciar uma investigação (no sentido de Dewey) para entender a difusão e a extensão do novo coronavírus em seus locais de moradia, bem como de que forma o número de casos era contabilizado e apresentado.
Logo depois aqui no Borel na organização da produção de dados percebemos que estava acontecendo alguma coisa, pois muitos moradores estavam morrendo. Havia muitos relatos de moradores gripados, mas com a falta de acesso aos testes, não sabíamos o que era de fato, mas já desconfiávamos de coronavírus. Então não tínhamos uma política de transparência na divulgação dos dados. Quando tivemos acesso a esses dados e descobrimos que eles eram agrupados por bairro (Borel e Tijuca) e como não tinha o Borel no Painel, decidimos criar o CoronaZap. (Igor Soares, morador do Morro do Borel)
A falta de transparência na divulgação dos dados sobre o novo coronavírus nesses territórios gerou grande desconfiança e preocupação entre lideranças que resolveram, então, começar a fazer levantamentos próprios. Assim, surgiram os primeiros painéis comunitários de monitoramento do número de pessoas infectadas e de óbitos nessas localidades.
Nessa configuração, os painéis comunitários se apresentaram como um importante dispositivo tanto para informar a população habitante desses territórios sobre o que estava ocorrendo quanto para criticar publicamente o modo como as agências estatais (nesse caso, as municipais) identificam e quantificam a extensão e a intensidade da pandemia nas favelas. É possível dizer que esses painéis buscam operar uma torção no regime de verdade (Foucault, 2006) que constitui e autoriza o discurso verdadeiro sobre o novo coronavírus na cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, eles se apresentam como um esforço prático-discursivo de fazer ver a pandemia nas favelas, de validar certos enunciados e práticas sobre a emergência sanitária e de saúde nestas localidades.
Dessa angulação, é possível dizer que a disputa sobre a verdade da pandemia nas favelas é uma disputa não somente sobre a realidade deste evento crítico (Das, 1995), mas fundamentalmente desses próprios territórios. Desse modo, o enquadramento aqui sugerido acerca do fenômeno dos painéis comunitários ressoa a questão formulada por Freire (2020) acerca do que conta como real na atual conjuntura. Desdobrando suas reflexões, o autor afirmar que o verbo “contar” apresenta dois sentidos diferentes, mas complementares: um mais “quantitativo”, que se refere ao ato de calcular e contabilizar, por exemplo, através das estatísticas, e outro “qualitativo”, que aponta para a expressão da consideração, do “se importar com”, uma preocupação com as crenças, valores, experiências das pessoas. O que conta como real no interior dessa disputa sobre a verdade da pandemia nas favelas é o que vai delimitar a ação desses coletivos, grupos ou arranjos multifacetados entre organizações locais e algumas agências estatais tanto no sentido de registrar quantitativamente a difusão do novo coronavírus nesses territórios, como no efeito prático-político dessas experiências em torno da formulação de painéis próprios.
Ao fazer ver a pandemia nas favelas, os painéis também parecem fazer ver as próprias favelas, em sua dimensão fenomenológica, como uma forma urbana específica na qual se atualizam determinadas questões da cidade, suas dinâmicas de segregação, bem como as lutas e potências tecidas cotidianamente nestas localidades. Nesse sentido, buscam operar um deslocamento prático-discursivo do modo como costumam aparecer aos aparatos midiáticos e estatais ao torcerem os enquadramentos que os constituem quase sempre a partir de signos negativos, cujos efeitos costumam se resumir ou à práticas violentas de controle ou à precariedade no fornecimento de serviços públicos.
ORGANIZAÇÃO DOS PAINÉIS COMUNITÁRIOS E SEUS MODOS DE OPERAR[editar | editar código-fonte]
O levantamento realizado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco16 nos possibilita compreender a diversidade de objetivos, fontes, atores envolvidos e territórios abrangidos nos painéis comunitários. Há mapeamentos que reúnem informações de diversas favelas da cidade, como o que é produzido pelo coletivo de comunicação Voz das Comunidades, lançado no início de abril de 2020, organizado por moradores do Complexo do Alemão e que, desde então, vem ampliando o número de territórios cujas informações apresenta. Também encontramos painéis específicos nas favelas da Maré, Santa Marta, Alemão, Manguinhos, Rocinha e Borel.
A maior parte deles possui sites próprios. Mas em alguns casos, a divulgação dos dados não é centralizada em um site. Ela pode ocorrer através de redes sociais, do Dicionário de Favelas Marielle Franco, assim como a partir de reportagens divulgadas pela imprensa comercial ou comunitária. A atualização diária de informações é o padrão de divulgação de grande parte dos painéis, mas alguns as divulgam de forma menos regular. Entre as informações divulgadas, podemos encontrar em quase todos os painéis os dados sobre contaminados e mortos. Há painéis que incluem dados também sobre casos suspeitos/casos sintomáticos (de pessoas que não fizeram testes) e de recuperados. Outros dados ainda mais específicos também são levantamentos, tais como sintomas, faixa etária e gênero, informações sobre a equipe de saúde que acompanha os casos e internações por semana. Além disso, os painéis também produzem informações sobre possíveis sintomas de amigos e parentes, as possibilidades de acesso ao serviço de saúde, bem como de serviços essenciais (como acesso água e energia elétrica), uso de máscara e sanitização.
Os painéis são compostos por informações levantadas de diferentes fontes (e formas): a) dados oficiais da Organização Mundial da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria Estadual de Saúde RJ e Secretaria Municipal de Saúde RJ; b) levantamento feito pelos próprios moradores (coletados pelos próprios moradores por meio de entrevistas presenciais, por whatsapp ou mesmo através de aplicação de questionários online ou por telefone); c) levantamento feito por agentes de saúde (dados levantados pelas clínicas da família); d) mapeamentos mistos (envolvendo tanto dados oficiais, como levantamentos feitos por agentes de saúde e pelos próprios moradores).
A produção de informações de maneira presencial é feita, por exemplo, pelo coletivo SOS Providência/Região Portuária que passou a formar o que chamaram de “moradores-monitores” que atuam com auxiliares “para a gestão territorial durante o período do isolamento social, reunindo informações e demandas da população e diagnóstico de monitoramento das áreas do morro”18. Esses monitores atuam mapeando domicílios para identificar necessidades, reunir estatísticas, organizar a distribuição de doações e conscientizar moradores. Como explicou Cosme Fellipsen19, liderança da Providência, durante a live já citada anteriormente, o projeto dos moradores monitores:
Surgiu com a ideia de que a gente precisava de moradores que conheciam suas áreas para poderem atuar e levantar dados. No começo eram 12 moradores nas ruas com seus celulares nas mãos, mas com protetor, macacão, viseira (...) Conseguimos atingir 5 mil pessoas, vimos que tínhamos, em maio, 386 com suspeita de corona, 38 pessoas confirmadas, 10 mortes (7 suspeitas e 3 confirmadas). (Cosme Felippsen, morador do Morro da Providência)
No caso do Santa Marta, favela da Zona Sul da cidade, o levantamento não é feito presencialmente, mas através de um formulário online enviado através do Grupo Alerta Santa Marta (que reúne mais de 700 moradores). Já a experiência dos moradores do Borel, Zona Norte, surge a partir de uma articulação do Laboratório de Estudos do Borel para criação de um espaço virtual por meio do Whatsapp – o CoronaZap. Embora seja feito com a colaboração de diversos profissionais, o trabalho é voluntário, feito a partir de uma vaquinha online e contando apenas com equipamentos que os moradores já possuíam:
A gente recebe a mensagem do morador e ele na hora recebe uma mensagem automática das informações que ele precisa dar pra gente colocar isso num banco de dados. Essas informações vão para essa planilha. A gente tem uma equipe com sociólogos, enfermeiras, consultores da saúde, uma galera bem ampla. E montamos nossos boletins a partir dessa nossa articulação interna, de certa forma manual. (Igor Soares, morador do Borel)
Outra modalidade de painel é aquela que se constitui a partir da relação entre coletivos locais e as Clínicas da Família. As Unidades Básicas de Saúde cumprem um papel importante em favelas e periferias do ponto de vista da construção de uma relação de proximidade entre os serviços de saúde e a população, com destaque ao trabalho das agentes comunitárias de saúde. A relação entre organizações e coletivos locais e os serviços de saúde básica tem produzido em muitos territórios uma qualificação das intervenções político-sociais e do enfrentamento da subnotificação, justamente porque tal arranjo permite entrever a constituição de outra verdade da pandemia na cidade e, em particular, nessas localidades.
No caso da favela da Rocinha, Zona Sul da cidade, é possível observar dois tipos de mapeamento: de um lado, aquele realizado pelo jornal comunitário Fala Roça que divulga o Painel Coronavírus Rocinha21 com gráficos que mostram a evolução diária da pandemia na favela, com dados fornecidos pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Por sua vez, a Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza em conjunto com a Clínica da Família Ronaldo Lamare e o CMS Albert Sabin criaram outro painel, resultado de uma troca de tecnologias entre profissionais e moradores de diferentes favelas. O painel foi inspirado em iniciativas semelhantes feitas no Complexo do Alemão e em Manguinhos (Araújo; Mallart; Gaudenzi, 2020), tendo como objetivo tornar públicos os dados de vigilância feitos por profissionais de saúde”22 .
Além da articulação com profissionais de saúde, os moradores desses territórios têm intensificado, especialmente através das ações realizadas durante a pandemia, o intercâmbio social e político entre diferentes favelas. Essas trocas podem ocorrer a partir de contatos individuais entre moradores de várias localidades, mas também a partir de iniciativas das associações de moradores, de ONGs locais, coletivos ou mesmo das “frentes” e “gabinetes de crise” criados durante a pandemia para organizar e centralizar as ações de combate ao novo coronavírus nesses territórios (FLEURY e MENEZES, 2020).
Além da dimensão material, esse intercâmbio sociopolítico entre as favelas envolve uma intensa troca de saberes, tecnologias, experiências e redes de contatos. Como ressalta Cosme Felippsen, do Morro da Previdência: “tem algumas redes que nós de favelas nos encontramos, pelo zap (...). Por exemplo, no Santa Marta começou a sanitização e depois eles foram trocando com a gente sobre o que fazer”. Amanda, moradora e ativista da Maré, acrescenta que “quando uma favela precisa da outra a gente tem GT's da Frente de Mobilizações, temos um GT de Comunicação que fica responsável por essa troca e articulação”.
Mais recentemente, como desdobramento dessas várias experiências de painéis próprios formulados por coletivos e moradores de diferentes favelas, foi lançado em julho de 2020 o “Painel Unificador das Favelas”24, iniciativa da Comunidades Catalisadoras através do RioOnWatch25 em parceria com várias organizações destas localidades. O objetivo é reunir informações sobre casos prováveis, confirmados e mortes em função da covid-19 nesses territórios. O levamento é feito a partir de diferentes fontes, tais como os próprios grupos e coletivos locais, relatos diretos dos moradores, painéis governamentais e também notícias da imprensa. Uma das novidades apresentadas pelo Painel Unificador é que ele permite aos moradores relatarem sintomas usando um algoritmo de verificação, cujos resultados também aparecem no painel. Portanto, um dos objetivos fundamentais dessa iniciativa coletiva é apoiar os esforços de prevenção realizados por movimentos e coletivos comunitários, possibilitar a difusão de informação correta entre os moradores e pressionar as autoridades públicas pela implementação de políticas que diminuam o impacto do novo coronavírus nesses territórios, fornecendo uma perspectiva mais precisa de sua proliferação.
Apesar dos diferentes formatos assumidos pelos painéis comunitários, que realizam o esforço de quantificar a extensão e intensidade do novo coronavírus, bem como seus diferentes efeitos (econômicos, sociais, sanitários), é possível afirmar que eles operam num campo de disputa que nos parece fundamental para compreender como esse evento crítico se manifesta no cotidiano de vida dessas populações: aquele acerca da realidade da pandemia nesses territórios, assim como da realidade destas próprias localidades. Ou seja, ao quantificarem a extensão e os impactos do novo coronavírus em seus locais de moradia, estes moradores e seus coletivos buscam chamar a atenção não apenas para esse novo vírus em circulação, mas para si mesmos, no sentido de que suas vidas também merecem a atenção e os cuidados necessários para continuarem existindo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS[editar | editar código-fonte]
Ao longo desse artigo buscamos descrever e analisar o que estamos chamando aqui de painéis comunitários como expressão do modo como os moradores de favelas do Rio de Janeiro disputam a verdade da pandemia nesses territórios. Contudo, é possível afirmar que essas iniciativas se apresentam como um dos desdobramentos circunstanciais possíveis de diferentes experiências políticas forjadas nos últimos anos por organizações e coletivos de favelas no sentido da produção de dados e informações próprios sobre suas vivências. Isso pode ser visualizado, por exemplo, a partir da criação de institutos de pesquisas próprios ou de levantamentos feitos em parcerias com outros coletivos, ONGs e universidades. É possível afirmar que os painéis, apesar de uma inovação nas práticas políticas dessas organizações, operam em um plano de continuidade em relação a diferentes iniciativas recentes que buscam não apenas valorizar saberes locais, mas também mobilizar a própria lógica da pesquisa usualmente feita em centros de pesquisa e nas universidades, produzindo um deslocamento das instâncias autorizadas historicamente para a produção de conhecimento. Além disso, os painéis também repercutem um modo específico de autoidentificação e da lógica de articulação de organizações e coletivos de favelas atualmente: aquela marcada pela expressão “nós por nós”.
Como mostramos anteriormente, os painéis envolvem dados, fontes e metodologias diversas. Além disso, eles são organizados por diferentes atores. Algumas articulações envolvem apenas moradores; outras incorporam agentes públicos de saúde; há ainda as que aglutinam coletivos de diferentes favelas, como é o caso do painel unificador. Esses mapeamentos também se caracterizam por objetivos específicos e diferentes níveis de publicidade. Alguns apresentam informações publicizadas na internet diariamente, enquanto outros as utilizam como forma de organização do trabalho interno e não envolvem a divulgação para um público mais amplo.
Em resumo, é possível afirmar que os painéis compõem um mosaico multifacetado de ações ao longo de um contínuo de mobilizações que têm ocorrido desde o início da pandemia. Em alguma medida, todos eles estão inseridos em um contexto de disputa pela verdade da pandemia, uma vez que precisam combater a política de desinformação que insiste em expor os moradores de favelas à morte. Ao disputar a verdade da pandemia nessas localidades por meio desses painéis (entre outras ações), os habitantes dessas localidades e seus coletivos produzem outra realidade de suas experiências de vida diferente daquela usualmente constituída pelos discursos e práticas da imprensa comercial e das agências estatais. Nesse sentido, estamos considerando o agenciamento desses painéis não apenas como formas de apresentação de um determinado modo de existir na cidade (as favelas), mas fundamentalmente como dispositivos de crítica ao processo de exposição contínua à morte que essas pessoas estão vivenciando no contexto da pandemia. Assim, no limite, os painéis podem ser tidos, no contexto da pandemia, como esforços que os habitantes destas localidades realizam para defender a vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS[editar | editar código-fonte]
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