Exibir código-fonte para Favelas e Comunidade Política – A partir dos anos 1960

<p style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="line-height:normal">''O presente verbete é uma parte do capítulo 06 do livro “A sociologia do Brasil urbano”, intitulado “Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social”. O capítulo é de Anthony Leeds e Elizabeth Leeds e o livro é publicado pela Editora Fiocruz. A utilização do texto foi gentilmente acordada entre a Editora Fiocruz e a equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.''</span></p> <p style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">Ver também: [[Favelas_e_Comunidade_Política_–_Até_os_anos_1960|Favelas e Comunidade Política - Até os anos 1960]]</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">__FORCETOC__</p> 
= <span style="line-height:normal">'''A Era do Controle Renovado, da Erradicação e da Repressão'''</span> =
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Os&nbsp; meses&nbsp; restantes&nbsp; de&nbsp; 1962&nbsp; assistiram&nbsp; a&nbsp; uma&nbsp; completa&nbsp; reorganização dos&nbsp; serviços&nbsp; sociais&nbsp; do&nbsp; Estado. O&nbsp; Serfha&nbsp; foi&nbsp; desfeito&nbsp; e, em&nbsp; agosto, suas&nbsp; funções&nbsp; passaram&nbsp; ao&nbsp; Serviço&nbsp; Social&nbsp; das&nbsp; Favelas&nbsp; e&nbsp; suas&nbsp; atividades&nbsp; físicas&nbsp; para o&nbsp; Departamento&nbsp; de&nbsp; Recuperação&nbsp; de&nbsp; Favelas&nbsp; (CRF).&nbsp; O&nbsp; Serviço&nbsp; Social,&nbsp; por&nbsp; sua vez, autorizou&nbsp; cada&nbsp; administração&nbsp; regional&nbsp; a&nbsp; tratar&nbsp; de&nbsp; suas&nbsp; próprias&nbsp; favelas, exceto&nbsp; em&nbsp; caso&nbsp; de&nbsp; presença&nbsp; da&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII,32&nbsp;&nbsp; que&nbsp; Lacerda,&nbsp; por&nbsp; sua série de manobras, havia transformado em dezembro de 1962 de seu estatuto 1960 de pessoa jurídica privada operando sob o controle e financiamento do &nbsp;&nbsp;Estado&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; subordinada&nbsp;&nbsp; inoperante&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; Companhia&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Habitação Popular&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara&nbsp; (Cohab),33&nbsp;&nbsp; e&nbsp; em&nbsp; 1964&nbsp; em&nbsp; um&nbsp; órgão&nbsp; estatal semiautônomo&nbsp;&nbsp; subordinado&nbsp;&nbsp; à&nbsp;&nbsp; Secretaria&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Serviços&nbsp;&nbsp; Sociais&nbsp;&nbsp; (entrevista com&nbsp;&nbsp; Josefina&nbsp;&nbsp; Albano,&nbsp;&nbsp; 1966).&nbsp;&nbsp; Também&nbsp;&nbsp; foram&nbsp;&nbsp; incluídos&nbsp;&nbsp; sob&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; secretaria, na&nbsp;&nbsp; ampla&nbsp;&nbsp; reorganização&nbsp;&nbsp; posterior&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; administração&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; estado&nbsp;&nbsp; feita&nbsp;&nbsp; por Lacerda,34&nbsp; em dezembro de 1962, a Cohab, o Departamento de Recuperação de Favelas e o antigo Serviço Social.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; criação&nbsp; da&nbsp; Cohab&nbsp; inicia&nbsp; uma&nbsp; era&nbsp; de&nbsp; erradicação&nbsp; na&nbsp; política&nbsp; relativa&nbsp; à favela&nbsp; tanto&nbsp; estadual&nbsp; quanto&nbsp; nacional,&nbsp; apesar&nbsp; dos&nbsp; objetivos&nbsp; expressos&nbsp; da Cohab de assistência às favelas para melhorar, construir casas e, com a ajuda da&nbsp;&nbsp; subordinada&nbsp;&nbsp; Fundação&nbsp;&nbsp; Leão&nbsp;&nbsp; XIII,&nbsp; urbanizar.&nbsp; A&nbsp;&nbsp; criação&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; autoridade&nbsp; de&nbsp; construção&nbsp; habitacional&nbsp; de&nbsp; baixo&nbsp; custo&nbsp; podia&nbsp; apenas&nbsp; significar&nbsp; uma intenção de construir casas de baixo custo em grande escala. Sugeriu-se que a&nbsp;&nbsp; Cohab&nbsp;&nbsp; foi&nbsp;&nbsp; criada,&nbsp; em&nbsp;&nbsp; parte,&nbsp; para&nbsp;&nbsp; arrecadar&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; soma&nbsp;&nbsp; considerável&nbsp;&nbsp; de dinheiro por meio do Acordo do Fundo de Trigo Estados Unidos-Brasil, dando assim&nbsp; ao&nbsp; orçamento&nbsp; do&nbsp; estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara&nbsp; um&nbsp; auxílio&nbsp; significativo&nbsp; em dinheiro isento de tributação. Essa observação é de especial interesse em vista da&nbsp; criação&nbsp; do&nbsp; Conselho&nbsp; Federal&nbsp; de&nbsp; Habitação,&nbsp; em&nbsp; 25&nbsp; de&nbsp; junho&nbsp; de&nbsp; 1962,&nbsp; pelo governo Goulart (Decreto Federal n. 1, 281, 1962).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">As cláusulas do decreto parecem orientar-se, em primeiro lugar, para a abertura de canais ao pobre (art. 2, I e X, art. 3, parágrafo 4), provavelmente uma continuação do populismo getulista bem como parte da tentativa multifacetada do presidente Goulart de lançar uma base política&nbsp; firme&nbsp; no seio do proletariado urbano, especialmente durante o período em que foi bloqueado pela&nbsp; imposição&nbsp; do&nbsp; parlamentarismo.&nbsp; Segundo,&nbsp; parece&nbsp; orientar-se no sentido do estabelecimento do controle&nbsp; federal&nbsp; sobre&nbsp; o dinheiro&nbsp; vindo&nbsp; do exterior, uma característica importante nas jogadas de poder político no Brasil, quando era possível aos governadores estaduais – como Lacerda e Aluísio Alves – agir como chefes de países soberanos para a obtenção de empréstimos de outras nações soberanas (os Estados Unidos) (ver art. 2, III, XIII, parágrafo único). O Conselho Federal de Habitação deveria também encorajar a pesquisa habitacional (art. 2, VII, VIII) e criar pessoal técnico.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; criação&nbsp; da&nbsp; Cohab&nbsp; pode&nbsp; ser&nbsp; vista&nbsp; como&nbsp; uma&nbsp; resposta&nbsp; à&nbsp; criação&nbsp; do&nbsp; Conselho&nbsp; Federal&nbsp; de&nbsp; Habitação&nbsp; e&nbsp; suas&nbsp; cláusulas&nbsp; porque,&nbsp; em&nbsp; um&nbsp; sentido&nbsp; formal, foi&nbsp; organizado&nbsp; para&nbsp; fazer&nbsp; exatamente&nbsp; as&nbsp; coisas&nbsp; estabelecidas&nbsp; pelo&nbsp; decreto federal.&nbsp; Ao&nbsp; mesmo&nbsp; tempo,&nbsp; ela&nbsp; criava,&nbsp; em&nbsp; um&nbsp; sentido&nbsp; informal,&nbsp; um&nbsp; corpo independente&nbsp;&nbsp; sob&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; controle&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Lacerda&nbsp;&nbsp; (cujo&nbsp;&nbsp; vice-governador,&nbsp; Rafael&nbsp;&nbsp; de Almeida&nbsp; Magalhães,&nbsp; e&nbsp; o&nbsp; genro,&nbsp; Flexa&nbsp; Ribeiro,&nbsp; controlavam&nbsp; 49%&nbsp; da&nbsp; percentagem&nbsp; permitida&nbsp; a&nbsp; acionista&nbsp; privados)&nbsp; com&nbsp; acesso&nbsp; direto&nbsp; às&nbsp; massas&nbsp; proletárias&nbsp; urbanas&nbsp; que&nbsp; ele&nbsp; tentava&nbsp; mobilizar&nbsp; desde&nbsp; a&nbsp; “Batalha&nbsp; do&nbsp; Rio”,&nbsp; em&nbsp; 1948. A Cohab, que, por seus estatutos, podia receber subsídios, forneceu uma base organizacional&nbsp; para&nbsp; a&nbsp; constituição&nbsp; de&nbsp; uma&nbsp; oposição&nbsp; às&nbsp; forças&nbsp; de&nbsp; Goulart. Essa&nbsp; base&nbsp; foi&nbsp; fortalecida&nbsp; e&nbsp; expandida&nbsp; pela&nbsp; captura&nbsp; e&nbsp; incorporação&nbsp; da&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII&nbsp; ao&nbsp; aparato&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; nos&nbsp; vários&nbsp; movimentos&nbsp; de&nbsp; 1960,&nbsp; 1962 e&nbsp; 1964.&nbsp; O&nbsp; Serfha,&nbsp; como&nbsp; expressão&nbsp; dos&nbsp; regimes&nbsp; de&nbsp; Kubitschek&nbsp; e&nbsp; de&nbsp; Quadros (sendo&nbsp; que&nbsp; com&nbsp; o&nbsp; partido&nbsp; do&nbsp; último, a&nbsp; UDN, Lacerda&nbsp; havia&nbsp; também&nbsp; chegado ao poder como governador), representava uma base remanescente da ameaça das massas urbanas ao controle político de Lacerda. Ele foi desfeito, uma vez que&nbsp; sua&nbsp; política&nbsp; significava&nbsp; uma&nbsp; crescente&nbsp; independência&nbsp; e&nbsp; participação&nbsp; do proletariado&nbsp; nas&nbsp; decisões&nbsp; políticas&nbsp; e&nbsp; socioadministrativas,&nbsp; um&nbsp; desenvolvi- mento&nbsp; antagônico&nbsp; aos&nbsp; interesses&nbsp; representados&nbsp; por&nbsp; Lacerda:&nbsp; partido,&nbsp; Igreja, negócios e os seus próprios.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Voltemos ao acordo do Fundo do Trigo. Os termos do acordo entre Lacerda e&nbsp; a&nbsp; AID&nbsp; especificavam&nbsp; que,&nbsp; conforme&nbsp; o&nbsp; título&nbsp; 1&nbsp; da&nbsp; Lei&nbsp; 480&nbsp; da&nbsp; República&nbsp; dos Estados&nbsp; Unidos&nbsp; da&nbsp; América,&nbsp; um&nbsp; bilhão&nbsp; de&nbsp; cruzeiros&nbsp; (US$&nbsp; 2.857.000)&nbsp; obtidos pela&nbsp; venda&nbsp; de&nbsp; produtos&nbsp; agrícolas&nbsp; ao&nbsp; Brasil&nbsp; seriam &nbsp;usados&nbsp; para&nbsp; a&nbsp; urbani- zação parcial de algumas favelas, para a urbanização completa de uma grande favela, para a construção de 2.250 casas de baixo custo, para a “reacomodação” dos moradores das favelas e para a construção de um grande posto de saúde em&nbsp; uma&nbsp; distante&nbsp; região&nbsp; do&nbsp; estado.&nbsp; O&nbsp; estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara&nbsp; também&nbsp; contri- buiria com 3% de sua renda anual (Usis, 1962). Deve-se observar que um pedido anterior&nbsp; de&nbsp; dinheiro&nbsp; ao&nbsp; BID, feito&nbsp; em&nbsp; maio&nbsp; de&nbsp; 1961, não&nbsp; havia&nbsp; sido&nbsp; aceito&nbsp; na época do acordo com a AID (Fundação Leão XIII, 1962).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A jogada de Lacerda para a obtenção de apoio internacional e a tentativa, à qual se deu grande publicidade, de reconstrução em grande escala das favelas e sua posterior remoção devem ser vistas no contexto da política nacional brasileira pré-golpe, nos inícios dos anos 60. Interessado na Presidência, Lacerda, o ex-jovem jornalista radical, julgou oportuno seguir uma linha mais conservadora nos anos 60. Rios (1964: 168) observa:</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A candidatura de Carlos Lacerda para a Presidência da República, num contexto claramente antirreformista e de direita, mobilizando grandes recursos, parece anunciar... a fusão de partidos do centro em torno de seu nome, numa reformulação das posições conservadoras que tendem a ir para os extremos de modo a facilitar o ataque aos adversários.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A coincidência parece sugerir que Lacerda já buscava a Presidência desde os fins de 1961, ou em 1962 (ver Skidmore, 1967: 274, passim).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Apesar&nbsp; de&nbsp; sua&nbsp; atribuição,&nbsp; nos&nbsp; termos&nbsp; do&nbsp; Acordo&nbsp; do&nbsp; Fundo&nbsp; do&nbsp; Trigo&nbsp; da AID&nbsp; (ver Apêndice&nbsp; II), de&nbsp; reconstruir&nbsp; e&nbsp; urbanizar&nbsp; assim&nbsp; como&nbsp; de&nbsp; erradicar&nbsp; as favelas,&nbsp; declarações&nbsp; em&nbsp; documentos&nbsp; da&nbsp; Cohab&nbsp; criticam&nbsp; as&nbsp; administrações anteriores&nbsp; por&nbsp; não&nbsp; terem&nbsp; pensado&nbsp; em&nbsp; termos&nbsp; de&nbsp; erradicação,&nbsp; sugerindo&nbsp; ser esta a única política realista:</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Depois de 1955, o Estado voltou seus olhos mais uma vez para o pro- blema.&nbsp; Criou&nbsp; vários&nbsp; órgãos&nbsp; e&nbsp; instituições&nbsp; que&nbsp; tentaram&nbsp; por&nbsp; várias formas e meios minimizar os efeitos das pressões socioeconômicas que atuaram sobre a população favelada. Nenhum deles tinha como objetivo a erradicação dessas aglomerações. O atual governo (Lacer- da) foi o primeiro a enfrentar o problema em termos de erradicação (Estado da Guanabara, Cohab, 1963-65: 4).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; política &nbsp;de&nbsp; erradicação&nbsp; ganhou&nbsp; amplo&nbsp; apoio&nbsp; econômico&nbsp; e&nbsp; institucional com a criação, em 1964, após o golpe militar, do Banco Nacional da Habitação (BNH),&nbsp; com&nbsp;&nbsp; Sandra&nbsp;&nbsp; Cavalcanti,&nbsp; primeira&nbsp;&nbsp; secretária&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Serviços&nbsp;&nbsp; Sociais&nbsp;&nbsp; de Lacerda,&nbsp; como&nbsp; sua&nbsp; primeira&nbsp; presidente&nbsp; (Lei&nbsp; 4.380,&nbsp; 21&nbsp; de&nbsp; agosto&nbsp; de&nbsp; 1964). A orientação do BNH era decididamente a da escola monetarista do ministro da&nbsp; Fazenda&nbsp; Roberto&nbsp; Campos&nbsp; (que, em&nbsp; conexão&nbsp; com&nbsp; o&nbsp; Instituto&nbsp; de&nbsp; Pesquisas Econômicas&nbsp; e&nbsp; Aplicadas,&nbsp; Ipea,&nbsp; e&nbsp; conselheiros&nbsp; americanos,&nbsp; propôs&nbsp; a&nbsp; ideia&nbsp; de um esforço habitacional maciço como forma de dar impulso à economia e foi instrumento&nbsp; da&nbsp; criação&nbsp; de&nbsp; um&nbsp; banco&nbsp; da&nbsp; habitação);&nbsp; os&nbsp; monetaristas&nbsp; basea- vam&nbsp; o&nbsp; planejamento&nbsp; e&nbsp; a&nbsp; ação&nbsp; predominantemente &nbsp;em&nbsp; políticas&nbsp; fiscais&nbsp; mais do que nas institucionais, características especialmente dos anos Kubitschek e de economistas como o ministro do Planejamento Celso Furtado, ex-diretor da&nbsp;&nbsp; Superintendência&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Desenvolvimento&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; Nordeste&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; ex-membro&nbsp;&nbsp; da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão das Nações Unidas.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O banco, operando no interior desse quadro, argumentava que colocando grandes&nbsp;&nbsp;&nbsp; somas&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; dinheiro,&nbsp;&nbsp; como&nbsp;&nbsp; política&nbsp;&nbsp; fiscal&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; investimento,&nbsp;&nbsp; na habitação iria (a) criar muitos empregos; (b) contribuir para elevar os níveis de qualificação dos trabalhadores, e consequentemente a produtividade;</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">(c) estimular a indústria nacional;35 (d) estimular a indústria do aço; (e) rea- tivar o mercado de capitais, que durante um longo período antes de 1964 estivera notadamente em depressão, por causa da manutenção das leis de controle de aluguel pela administração&nbsp; federal&nbsp; – ambas&nbsp; medidas&nbsp; populistas e tentativas de manter suficientemente baixos os custos da habitação dispo- nível para acomodar a contínua migração para as cidades.&nbsp; O&nbsp; efeito&nbsp; havia&nbsp; sido, todavia, o de desencorajar novas construções – uma combinação de circunstâncias. O BNH, assim, argumentava que a construção de habitações em massa resolveria o “problema da favela” e contribuiria poderosamente para o renascimento da economia – em má situação, segundo&nbsp; o BNH, desde&nbsp; as desastrosas políticas de João Goulart (e mesmo em razão delas), mas segundo economistas como Werner Baer, desde os fins dos anos 50, por causa dos processos a longo prazo de superexpansão das capacidades de produção em relação aos mercados consumidores. Para alcançar esses objetivos, percebia-se também como essencial a eliminação da duradoura inflação – o monstro monetarista –, cuja abrupta subida em 1963 foi também atribuída a Goulart e tem sido&nbsp; enganosa&nbsp; e sistematicamente&nbsp; utilizada&nbsp; como&nbsp; base&nbsp; para&nbsp; a comparação de cada administração desde 1964. Enquanto a inflação estava sendo controlada, instituições especiais, tais como a “correção&nbsp; monetária”, que mantinha o valor dos capitais investidos, foram utilizadas pelo BNH.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Pouca reflexão e ainda menos pesquisa foram dedicadas à capacidade dos moradores da favela de pagar pelo “embrião” construído pela Cohab, ou pelas casas mínimas nos projetos habitacionais como a Vila Kennedy. A capacidade de&nbsp; pagar&nbsp; era,&nbsp; e&nbsp; ainda&nbsp; é,&nbsp; concebida&nbsp; como&nbsp; uma&nbsp; simples&nbsp; função&nbsp; percentual&nbsp; da renda familiar, e não como uma complexa política de alocação a longo prazo levada&nbsp; adiante&nbsp; pela&nbsp; família.&nbsp; Assim,&nbsp; por&nbsp; exemplo,&nbsp; a&nbsp; inclusão&nbsp; da&nbsp; “correção monetária”&nbsp; –&nbsp; uma&nbsp; contínua&nbsp; correção&nbsp; na&nbsp; soma&nbsp; paga&nbsp; sobre&nbsp; amortizações&nbsp; das casas-embrião&nbsp; e&nbsp; dos&nbsp; apartamentos,&nbsp; baseada&nbsp; na&nbsp; taxa&nbsp; de&nbsp; desvalorização&nbsp; do dinheiro&nbsp; –&nbsp; nos&nbsp; pagamentos&nbsp; de&nbsp; amortização&nbsp; produziu&nbsp; mais&nbsp; ou&nbsp; menos&nbsp; um acréscimo de 60% nos pagamentos dessas casas mínimas, porque as políticas de financiamento a longo prazo para pessoas de baixo nível de renda sempre consideraram a queda tanto dos custos absolutos quanto dos custos relativos dos pagamentos onde não houvesse “correção” em um sistema de pagamento por prestação. O problema tornou-se mais grave em virtude do fato de que, desde 1964, os aumentos salariais não foram concedidos nem na mesma época, nem na mesma medida em que o custo de vida aumentava.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Essa situação deriva diretamente do salário nacional, do controle da infla- ção e das políticas de investimento dos governos militares na forma como são realizadas, no&nbsp; caso&nbsp; em&nbsp; questão, por&nbsp; intermédio&nbsp; do&nbsp; órgão&nbsp; estatal&nbsp; da&nbsp; Cohab&nbsp; e, mais tarde, por intermédio deste e da Coordenação de Habitação de Interesse Social&nbsp; da Área&nbsp; Metropolitana&nbsp; do&nbsp; Rio&nbsp; de&nbsp; Janeiro&nbsp; (Chisam)&nbsp; (ver&nbsp; adiante), ambas capazes&nbsp; de&nbsp; usar&nbsp; a&nbsp; política&nbsp; ou&nbsp; a&nbsp; força&nbsp; militar&nbsp; quando&nbsp; necessário.&nbsp; Os&nbsp; interes- ses imediatamente ligados a essas políticas eram os da indústria da constru- ção&nbsp; e&nbsp; do&nbsp; mercado&nbsp; de&nbsp; capitais,&nbsp; ambos&nbsp; tendo&nbsp; apoiado&nbsp; vigorosamente&nbsp; Lacerda e as políticas nacionais.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Além&nbsp; disso,&nbsp; nem&nbsp; a&nbsp; Cohab&nbsp; nem&nbsp; Lacerda&nbsp; refletiram&nbsp; sobre&nbsp; o&nbsp; fato&nbsp; de&nbsp; que remover&nbsp; famílias&nbsp; faveladas&nbsp; para&nbsp; enclaves&nbsp; proletários&nbsp; isolados,&nbsp; distantes&nbsp; dos mercados&nbsp; de&nbsp; trabalho&nbsp; da&nbsp; cidade,&nbsp; criaria&nbsp; uma&nbsp; forte&nbsp; pressão&nbsp; econômica&nbsp; sobre famílias&nbsp; cujos&nbsp; orçamentos&nbsp; já&nbsp; eram&nbsp; esticados&nbsp; até&nbsp; o&nbsp; limite&nbsp; máximo.&nbsp; Produzi- riam&nbsp; também&nbsp; fortes&nbsp; pressões&nbsp; sociais&nbsp; devido&nbsp; ao&nbsp; tempo&nbsp; de&nbsp; transporte&nbsp; neces- sário&nbsp;&nbsp;&nbsp; para&nbsp;&nbsp;&nbsp; chegar&nbsp;&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp;&nbsp; trabalho,&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp;&nbsp; modo&nbsp;&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp;&nbsp; os&nbsp;&nbsp;&nbsp; homens&nbsp;&nbsp;&nbsp; geralmente permaneceriam&nbsp; na&nbsp; cidade&nbsp; durante&nbsp; a&nbsp; semana.&nbsp; Muitas&nbsp; famílias&nbsp; removidas&nbsp; de favelas&nbsp; para&nbsp; vilas&nbsp; desfizeram-se,&nbsp; tendo&nbsp; os&nbsp; homens&nbsp; encontrado&nbsp; novas&nbsp; famí- lias,&nbsp; voltando&nbsp; a&nbsp; inchar&nbsp; outras&nbsp; favelas,&nbsp; e&nbsp; suas&nbsp; mulheres&nbsp; ficado&nbsp; isoladas,&nbsp; sem trabalho e com crianças, ou também voltado para favelas na cidade.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Nessa última etapa da história da relação favela-administração, as favelas são&nbsp; novamente&nbsp; vistas&nbsp; como&nbsp; aberrações&nbsp; sociais&nbsp; nocivas, devendo&nbsp; ser&nbsp; removi- das do playground de elite da “gente boa” (ver nota 9, itens d, e, f, e a discussão sobre&nbsp; texto&nbsp; da&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII&nbsp; adiante). &nbsp;As&nbsp; poucas&nbsp; tentativas&nbsp; de&nbsp; oposi- ção&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; essa&nbsp;&nbsp; política&nbsp;&nbsp; encontraram&nbsp;&nbsp; vigorosa&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; efetiva&nbsp;&nbsp; reação&nbsp;&nbsp; por&nbsp;&nbsp; parte&nbsp;&nbsp; dos órgãos&nbsp; governamentais&nbsp; tanto&nbsp; a&nbsp; nível&nbsp; estadual&nbsp; como&nbsp; federal,&nbsp; como&nbsp; descre- veremos abaixo.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">As realizações mais notáveis da Cohab&nbsp; encontram-se na área da remoção e transferência das populações das favelas e da construção das vilas Kennedy, Aliança,&nbsp; Esperança&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; Cidade&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Deus&nbsp;&nbsp; (!!),&nbsp; embora&nbsp;&nbsp; tenha&nbsp;&nbsp; havido&nbsp;&nbsp; algumas tentativas&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp; longo&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; 1965&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; urbanização&nbsp;&nbsp; in&nbsp;&nbsp; loco&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; algumas&nbsp;&nbsp; poucas favelas.36&nbsp;&nbsp; Uma&nbsp; das&nbsp; duas&nbsp; primeiras&nbsp; favelas&nbsp; a&nbsp; serem&nbsp; removidas&nbsp; pela&nbsp; Cohab&nbsp; foi a do Morro do Pasmado, localizado em uma área turística por excelência com vista&nbsp; para&nbsp; a&nbsp; baía&nbsp; de&nbsp; Guanabara.&nbsp; Correu&nbsp; amplamente&nbsp; o&nbsp; rumor&nbsp; de&nbsp; que&nbsp; essa favela&nbsp; extraordinariamente&nbsp; visível&nbsp; foi&nbsp; removida&nbsp; para&nbsp; dar&nbsp; lugar&nbsp; a&nbsp; um&nbsp; hotel Hilton,&nbsp; e,&nbsp; com&nbsp; efeito,&nbsp; o&nbsp; Relatório&nbsp; Geral&nbsp; da&nbsp; Cohab&nbsp; lista,&nbsp; entre&nbsp; seus&nbsp; projetos, “Morro&nbsp; do&nbsp; Pasmado&nbsp; –&nbsp; construção&nbsp; do&nbsp; Hotel”&nbsp; (Estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara,&nbsp; Cohab, 1963-65: 27).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A reação da população favelada às remoções iniciais&nbsp; e&nbsp; à&nbsp; ameaça&nbsp; de novas remoções foi muito negativa. Estudo de Salmen feito em 1966&nbsp; relata um grau significativo de insatisfação por parte dos moradores da favela remo- vidos para as vilas Kennedy e Aliança (Salmen, 1969). O fracasso do candi- dato de Lacerda na eleição governamental de 1965, Flexa Ribeiro, seu con- traparente, parece ser, em grande parte, atribuível a essa reação negativa.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O maior&nbsp; número de&nbsp; votos&nbsp; contra&nbsp; Flexa&nbsp; Ribeiro&nbsp; foi&nbsp; sistematicamente das áreas proletárias que incluíam o maior número&nbsp; de favelas. A distribui-&nbsp; ção estatística reforça as impressões que tivemos em algumas favelas com base em entrevistas, sendo praticamente todas explicitamente anti-Lacerda, contra o governo nacional militar a quem&nbsp; ele&nbsp; e&nbsp; as&nbsp; dificuldades&nbsp; econômi-&nbsp; cas estavam associados, a seu ver, e, evidentemente, contra o “pupilo” de Lacerda, Flexa Ribeiro.37</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O resultado da eleição de 1965 na Guanabara levou ao poder Negrão de Lima, um governo que, apadrinhado pelo PTB-PSD, tornou-se oposição ao governo federal e, consequentemente, a suas políticas expressas a nível estatal. Este reagiu imediatamente, em crise, suprimindo todos os velhos partidos políticos e criando a miragem do aparente sistema bipartidário atual.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">As privações, que atingiram não apenas os entrevistados no estudo de Salmen mas também os milhares de removidos desde 1966, são de natureza econômica, social e emocional. Um breve estudo de caso de duas espécies de problema tipicamente encontradas ilustrarão essas dificuldades. A&nbsp; família que descrevemos está talvez em melhor situação do que muitas retiradas à força das favelas, mas seus problemas são típicos. Sua favela situava-se em uma área de elite do Rio, mas com um pequeno enclave de indústrias com salários comparativamente bons e algumas embaixadas que requeriam trabalho doméstico. Eduardo, 29 anos, ia a pé para o seu trabalho em uma fábrica têxtil; trabalhava das 16 horas à meia-noite, ganhando três salários mínimos na fábrica. Esse horário lhe permitia ter uma série de trabalhos secundários (biscates, ver Silberstein, 1969) como pintor de casas em suas horas vagas pela manhã. Vilma, sua mulher, 26 anos, ia também&nbsp; a&nbsp; pé&nbsp; para seu trabalho matinal como empregada em uma embaixada, o que deixava livres as suas&nbsp; tardes&nbsp; para&nbsp; dar almoço&nbsp; ao marido&nbsp; e tomar&nbsp; conta&nbsp; do filho de&nbsp; 4 anos e da sogra idosa e doente que morava com eles. Não pagavam aluguel, tendo construído a casa, e, com o salário&nbsp; de ambos&nbsp; e uma pequena&nbsp; pensão&nbsp; de sua mãe, podiam apenas se virar, gastando principalmente com alimenta- ção, abastecimento doméstico, remédios, peças de vestuário ocasionais e alguma ajuda à mãe de Vilma. Em março de 1966, a favela foi removida e a população colocada em um conjunto habitacional&nbsp; em&nbsp; um&nbsp; distante&nbsp; distrito do Rio, o que exigia duas horas de viagem de ônibus de ida e duas de volta, oito passagens por dia (cerca de 50-60% de um salário mínimo), pagamento de cuidadora para o filho, de uma amortização mais cara do que eles podiam arcar e a redução dos biscates de Eduardo devido às dificuldades de horário,&nbsp;&nbsp; e aumentava a tensão emocional entre marido e mulher porque seus horários só coincidiam aos domingos. Para muitas outras famílias, tal mudança signi- ficou também a perda de uma parte ou de todo o salário da mulher, uma vez que os empregos domésticos mais bem pagos encontram-se apenas na distante Zona Sul, longe dos novos conjuntos habitacionais. Além disso, significou a perda do dinheiro de reserva obtido pelas crianças como carregadores&nbsp; para&nbsp; as matronas de classe média nas feiras da Zona Sul, ou como engraxates ou meninos de recado nas áreas comerciais da cidade.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; era&nbsp; de&nbsp; erradicação,&nbsp; controle&nbsp; e&nbsp; repressão&nbsp; é&nbsp; também&nbsp; bem&nbsp; exemplificada pela&nbsp;&nbsp; história&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; atividades&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; Fundação&nbsp;&nbsp; Leão&nbsp;&nbsp; XIII&nbsp;&nbsp; nos&nbsp;&nbsp; anos&nbsp;&nbsp; 60&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; por&nbsp;&nbsp; sua subsidiária de curta vida, o Bemdoc (Brasil-Estados Unidos – Movimento para o Desenvolvimento e Organização de Comunidades).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Nos&nbsp;&nbsp; fins&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; década&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; 1950&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; início&nbsp;&nbsp; dos&nbsp;&nbsp; anos&nbsp;&nbsp; 60,&nbsp; a&nbsp;&nbsp; fundação&nbsp;&nbsp; estava moribunda,&nbsp; tendo&nbsp; as&nbsp; suas&nbsp; atividades&nbsp; e&nbsp; muitas&nbsp; outras&nbsp; sido&nbsp; englobadas&nbsp; pelo Serfha e pela Coordenação de Serviços Sociais dirigida por Rios. Toda a ativi- dade que a fundação desenvolveu havia sido, em sua maior parte, financiada pelo Estado (Berson, 1964: 28). Assim, na verdade, ela já era instrumento do Estado, embora ainda existisse como pessoa jurídica privada sob a influência conservadora de dom Jaime de Barros Câmara e possuísse ainda oficialmente centros em um grande número de importantes favelas, como assinalamos anteriormente.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Esse estatuto permaneceu durante os primeiros dois anos do governo Lacerda na Guanabara. Ainda não desemaranhamos completamente a teia política que lhe permitiu conquistar essa estrutura organizacional em 1960, porém ela envolve, entre outros, os elementos que se seguem. Lacerda&nbsp; já havia sido&nbsp; intimamente&nbsp; ligado&nbsp; à Igreja&nbsp; e ao seu chefe&nbsp; da ala direita&nbsp; no Rio, o cardeal Câmara, em muitas questões políticas, especialmente no concernente às batalhas em apoio às escolas paroquiais sob a nova lei nacional de educação (Maciel de Barros, 1960: 442, 504-522), enquanto era ainda deputado federal (ver também Skidmore, 1967: 200, 299, com seus&nbsp; pontos&nbsp; de vista semelhantes).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Em segundo lugar, Lacerda assegurou a candidatura de Quadros à Presidência da República, em 1959, pela legenda da UDN. O próprio Lacerda – talvez, em parte, às custas de Quadros – obteve a vitória sob a legenda da&nbsp; UDN, embora essa aliança, como tantas de Lacerda, fosse provisória. Assim, Lacerda foi pioneiro em uma arena&nbsp; política nova – a cidade-estado do Rio&nbsp; de Janeiro, não mais um apêndice nacional como o Distrito Federal, mas&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; um estado autônomo, maduro, política e administrativamente igual aos demais estados.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Dessa forma, Lacerda chegou ao poder com o múltiplo apoio, por um lado, da ala direita&nbsp; da Igreja&nbsp; e dos interesses&nbsp; corporativos&nbsp; de grandes&nbsp; empresas, e por outro de um certo populismo, derivado das posturas de Quadros no governo e na campanha, e das próprias declarações anteriores de&nbsp; Lacerda que pediam reforma administrativa, bom&nbsp; governo&nbsp; e&nbsp; maiores&nbsp; benefícios&nbsp; para o povo. A história dos cinco anos do seu governo pode&nbsp; ser entendida&nbsp; nos termos da predileção bastante clara de Lacerda pelo&nbsp; primeiro&nbsp; conjunto de interesses, conexões e influências; da crescente e dissonante oposição&nbsp; entre os dois conjuntos de interesses a nível federal durante os regimes de Quadros e Goulart; do explícito e abrupto movimento em direção ao&nbsp; primeiro conjunto, começando com o golpe de 1964 (no qual – como na queda e Quadros – Lacerda, esperando alcançar a Presidência, desempenhou um papel ativo), e de sua tentativa, entre 1964 e a posse de Negrão no cargo, em 1966, de fixar raízes permanentes de poder na ampla população urbana, e especialmente proletária, da Guanabara.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII&nbsp; tem&nbsp; uma&nbsp; história&nbsp; interessante&nbsp; com&nbsp; relação&nbsp; a&nbsp; essa sequência.&nbsp; Como&nbsp; dissemos,&nbsp; ela&nbsp; foi&nbsp; originalmente,&nbsp; e&nbsp; permaneceu&nbsp; até&nbsp; 1962 (ver&nbsp; Decreto&nbsp; [GB]&nbsp; n. 1041, 7&nbsp; de&nbsp; junho&nbsp; de&nbsp; 1962)&nbsp; como&nbsp; uma&nbsp; instituição&nbsp; privada, escorada&nbsp; pela&nbsp; Igreja, para&nbsp; o&nbsp; bem-estar&nbsp; social. Como&nbsp; o Apêndice&nbsp; II&nbsp; indica, por volta&nbsp; de&nbsp; 1961&nbsp; ela&nbsp; havia&nbsp; se&nbsp; tornado&nbsp; –&nbsp; em&nbsp; virtude&nbsp; do&nbsp; amplo&nbsp; apoio&nbsp; financeiro estatal&nbsp; e&nbsp; da&nbsp; “compreensão”&nbsp; do&nbsp; cardeal&nbsp; Câmara&nbsp; –&nbsp; um&nbsp; órgão&nbsp; estatal&nbsp; de&nbsp; facto. Lacerda escolheu esse órgão ambiguamente situado para representar o Estado e&nbsp; para&nbsp; ser&nbsp; o&nbsp; canal&nbsp; para&nbsp; a&nbsp; verba&nbsp; da AID&nbsp; fornecida&nbsp; pelo&nbsp; acordo. A&nbsp; fundação&nbsp; foi também&nbsp; designada&nbsp; como&nbsp; órgão&nbsp; responsável&nbsp; por&nbsp; desenvolver&nbsp; atividades&nbsp; de urbanização.&nbsp; Assim,&nbsp; a&nbsp;&nbsp; organização&nbsp;&nbsp; privada,&nbsp; religiosa,&nbsp; de&nbsp;&nbsp; bem-estar&nbsp;&nbsp; social, estabelecida&nbsp; originalmente&nbsp; com&nbsp; o&nbsp; objetivo&nbsp; principal&nbsp; de&nbsp; combater&nbsp; a&nbsp; influência&nbsp; comunista&nbsp; e&nbsp; ainda&nbsp; supervisionar&nbsp; 34&nbsp; favelas&nbsp; importantes,&nbsp; tornou-se,&nbsp; por curto&nbsp; período,&nbsp; o&nbsp; instrumento&nbsp; oficial&nbsp; de&nbsp; urbanização&nbsp; e&nbsp; o&nbsp; receptor&nbsp; dos&nbsp; fundos internacionais concedidos ao estado.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Na&nbsp;&nbsp; reforma&nbsp;&nbsp; administrativa&nbsp;&nbsp; geral&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; agosto-dezembro&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; 1962,&nbsp;&nbsp; depois da&nbsp; extinção&nbsp; da&nbsp; Coordenação&nbsp; e&nbsp; da&nbsp; criação&nbsp; da&nbsp; Secretaria&nbsp; de&nbsp; Serviços&nbsp; Sociais, a&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII&nbsp; foi&nbsp; absorvida&nbsp; pela&nbsp; então&nbsp; recente&nbsp; Companhia&nbsp; Estadual de&nbsp; Habitação&nbsp; Popular&nbsp; da&nbsp; Guanabara,&nbsp; ou&nbsp; Cohab.&nbsp; Documentos&nbsp; da&nbsp; época&nbsp; são rotulados&nbsp;&nbsp; “Cohab&nbsp; &nbsp;–&nbsp;&nbsp; Fundação&nbsp;&nbsp; Leão&nbsp;&nbsp; XIII”&nbsp;&nbsp; ou,&nbsp;&nbsp; ocasionalmente,&nbsp;&nbsp; vice-versa. No&nbsp; intervalo&nbsp; entre&nbsp; a&nbsp; assinatura&nbsp; do Acordo&nbsp; do&nbsp; Fundo&nbsp; do Trigo&nbsp; e&nbsp; sua&nbsp; absorção pela&nbsp; Cohab,&nbsp; a&nbsp; fundação&nbsp; havia&nbsp; começado&nbsp; a&nbsp; trabalhar&nbsp; na&nbsp; primeira&nbsp; das&nbsp; cidades proletárias – Vila Aliança –, cujo estabelecimento, sob a direção da Cohab, já&nbsp; começara&nbsp; no&nbsp; início&nbsp; de&nbsp; 1963.&nbsp; Outros&nbsp; “projetos”&nbsp; de&nbsp; “vilas”&nbsp; e&nbsp; o&nbsp; de&nbsp; urbanização da favela da Penha, listados no acordo, foram desenvolvidos sob a direção da Cohab.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; Cohab&nbsp; permanece,&nbsp; hoje,&nbsp; como&nbsp; um&nbsp; organismo&nbsp; basicamente&nbsp; habitacional. Sua relação específica com o Estado e, após 1964 – com a fundação do BNH e sua divisão a nível federal (também chamada Cohab) como autoridades em habitações&nbsp; de&nbsp; baixo&nbsp; custo&nbsp; –, com&nbsp; os&nbsp; governos&nbsp; federais&nbsp; mudou&nbsp; muitas&nbsp; vezes.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O&nbsp; que&nbsp; variou&nbsp; nessas&nbsp; mudanças&nbsp; foram&nbsp; suas&nbsp; atividades&nbsp; subsidiárias,&nbsp; como serviço&nbsp; de&nbsp; bem-estar&nbsp; social.&nbsp; A&nbsp; fundação&nbsp; permaneceu&nbsp; adormecida&nbsp; por&nbsp; cerca de&nbsp; ano&nbsp; e&nbsp; meio, mantendo&nbsp; serviços&nbsp; médicos&nbsp; e&nbsp; sociais&nbsp; muito&nbsp; básicos&nbsp; em&nbsp; algumas&nbsp;&nbsp; favelas&nbsp;&nbsp; tradicionalmente&nbsp;&nbsp; sob&nbsp;&nbsp; seu&nbsp;&nbsp; controle,&nbsp;&nbsp; como&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; espécie&nbsp;&nbsp; de ramificação de bem-estar social da Cohab.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A renovação das atividades da Fundação Leão XIII começaram com a pro- posta da AID para um projeto de demonstração de desenvolvimento comunitário baseado em pesquisa supondo-se que (a) as favelas continuariam a existir por muito tempo; (b) a necessidade de fundos era inesgotável;</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">programas de desenvolvimento comunitário poderiam ser feitos para a diminuição dos custos em áreas pobres, e (d) com novas abordagens e práticas demonstrativas eles poderiam ter um efeito multiplicador significativo (Leavitt, em Leeds,&nbsp; 1966:&nbsp; 1).&nbsp; A&nbsp; proposta&nbsp; foi,&nbsp; eventualmente,&nbsp; apresentada ao estado da Guanabara através da então secretária de Serviços Sociais de Lacerda, Sandra Cavalcanti, que lhe deu sua “entusiástica aprovação e subsequente apoio” – com o aval de Lacerda, ao que se supõe (ibid.).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">É interessante observar que a primeira formulação da proposta foi feita em outubro de 1963 – em meio às intensas atividades populistas do presidente Goulart e do deputado federal Leonel Brizola, eleito pela Guanabara em 1962, embora tivesse poucas ligações neste estado, por um recorde de votos, na mesma eleição que trouxe ao poder Elói Dutra, “um franco opositor de Lacerda” (Skidmore, 1967: 230) como vice-governador da Guanabara. Brizola estava presumivelmente desenvolvendo seu Grupo dos Onze e preconizando mu- dança radical e atividades de esquerda no Brasil. Assim, do ponto de vista de Lacerda, de seus objetivos políticos e de sua política estatal, ele se confrontava com um vice-governador antagonista, um deputado federal radical, da Guanabara, aparentemente muito poderoso, ativo entre a população, e um presidente esquerdista que tentava radicalizar as massas urbanas. O “entusiasmo” de Sandra Cavalcanti, então, é mais do que compreensível, uma vez que a ela, como agente de Lacerda, se apresentava uma proposta de canalizar dinheiro para os cofres do Estado, de criar um organismo cujas realizações redundariam em&nbsp; crédito&nbsp; para&nbsp; o&nbsp; governador,&nbsp; enquanto&nbsp; neutralizariam o ônus das remoções de favelas já iniciadas e forneceriam um canal adicional de influência nas favelas, muitas da quais eram sabidamente ligadas às atividades inspiradas por Brizola e Goulart.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O&nbsp; presidente&nbsp; da&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII,&nbsp; que,&nbsp; já&nbsp; havia&nbsp; algum&nbsp; tempo,&nbsp; era&nbsp; de algum&nbsp; modo&nbsp; subsidiária&nbsp; da&nbsp; Secretaria&nbsp; de&nbsp; Serviços&nbsp; Sociais&nbsp; (SSS),&nbsp; induziu&nbsp; a AID a se colocar sob a égide da fundação devido à sua flexibilidade e autonomia administrativa e financeira; porque ela executava “importantes planos da Secretaria&nbsp; de&nbsp; Bem-Estar&nbsp; Social”;&nbsp; e&nbsp; devido&nbsp; a&nbsp; seus&nbsp; longos&nbsp; anos&nbsp; de&nbsp; ligação&nbsp; com o problema das áreas pobres (carta à AID, 16/3/1964, apud Leavitt e em Leeds, 1966: 2). A fundação era também a escolha de Sandra Cavalcanti.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp;&nbsp; dotação&nbsp;&nbsp; inicial&nbsp;&nbsp; relacionada&nbsp;&nbsp; à&nbsp;&nbsp; Lei&nbsp;&nbsp; 480,&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; fundos&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; trigo,&nbsp;&nbsp; era&nbsp;&nbsp; de Cr$&nbsp;&nbsp; 424.000.000,&nbsp;&nbsp; com&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; promessa&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; soma&nbsp;&nbsp; posterior&nbsp;&nbsp; maior,&nbsp;&nbsp; dependendo&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; avaliação&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp; fim&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; dois&nbsp;&nbsp; anos;&nbsp;&nbsp; um&nbsp;&nbsp; subsídio&nbsp;&nbsp; adicional&nbsp;&nbsp; de Cr$&nbsp; 270.000.000&nbsp; era&nbsp; concedido&nbsp; (um&nbsp; total&nbsp; bruto&nbsp; de&nbsp; cerca&nbsp; de&nbsp; 450.000&nbsp; dólares na&nbsp; época).&nbsp; O&nbsp; projeto&nbsp; chamou-se&nbsp; Bemdoc&nbsp; e&nbsp; iniciou&nbsp; suas&nbsp; operações&nbsp; por&nbsp; volta de outubro de 1964.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">À altura de dezembro de 1966, o Bemdoc estava morto. Uma análise desse desaparecimento,&nbsp; bem&nbsp; como&nbsp; dos&nbsp; últimos&nbsp; meses&nbsp; do&nbsp; regime&nbsp; de&nbsp; Lacerda&nbsp; e&nbsp; do primeiro&nbsp; ano&nbsp; do&nbsp; governo&nbsp; de&nbsp; Negrão&nbsp; de&nbsp; Lima,&nbsp; clarifica&nbsp; a&nbsp; continuidade&nbsp; e&nbsp; as alterações na forma do controle que é o tema do nosso trabalho. Esse último começou&nbsp; de&nbsp; modo&nbsp; não&nbsp; auspicioso&nbsp; sob&nbsp; a&nbsp; ira&nbsp; do&nbsp; derrotado&nbsp; Lacerda,&nbsp; chuvas catastróficas,&nbsp;&nbsp; crise&nbsp;&nbsp; militar,38&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; repressão&nbsp;&nbsp; dos&nbsp;&nbsp; partidos&nbsp;&nbsp; políticos,&nbsp;&nbsp; tentativas de&nbsp; se&nbsp; iniciar&nbsp; uma&nbsp; investigação&nbsp; policial&nbsp; militar&nbsp; contra&nbsp; ele&nbsp; e&nbsp; acusações&nbsp; de&nbsp; corrupção e de brandura para com o comunismo.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O&nbsp; Bemdoc&nbsp; nunca&nbsp; teve&nbsp; estatuto&nbsp; jurídico&nbsp; de&nbsp; instituição,&nbsp; exatamente&nbsp; como a&nbsp;&nbsp; Fundação&nbsp;&nbsp; Leão&nbsp;&nbsp; XXIII,&nbsp; que&nbsp;&nbsp; permanecera&nbsp;&nbsp; por&nbsp;&nbsp; muito&nbsp;&nbsp; tempo,&nbsp; equivocada- mente, um órgão do Estado – e o era ainda quando a AID fundou o Bemdoc, sob sua supervisão. A fundação devia fornecer sede para o projeto, incluindo pessoal de secretaria e padres; manutenção de veículos e equipamentos; controle fiscal,&nbsp; incluindo&nbsp; a&nbsp; manutenção&nbsp; de&nbsp; contas,&nbsp; abertas&nbsp; à&nbsp; AID,&nbsp; de&nbsp; todas&nbsp; as&nbsp; operações&nbsp; do&nbsp; projeto.&nbsp; Assim,&nbsp; na&nbsp; suprema&nbsp; questão&nbsp; financeira,&nbsp; embora&nbsp; a&nbsp; AID&nbsp; alo- casse&nbsp;&nbsp; fundos&nbsp;&nbsp; especificamente&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp; Bemdoc,&nbsp;&nbsp; foram&nbsp;&nbsp; abertos&nbsp;&nbsp; canais&nbsp;&nbsp; para&nbsp;&nbsp; a utilização&nbsp; por&nbsp; parte&nbsp; da&nbsp; fundação&nbsp; de&nbsp; tais&nbsp; fundos&nbsp; para&nbsp; objetivos&nbsp; que&nbsp; não&nbsp; os do&nbsp;&nbsp; Bemdoc.&nbsp; O&nbsp;&nbsp; fracasso&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; tornar&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; Bemdoc&nbsp;&nbsp; juridicamente&nbsp;&nbsp; independente deixou-o, na verdade, simplesmente como um programa desprotegido, muito rico, da fundação.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Toda&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; história&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; projeto&nbsp;&nbsp; é&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; história&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; utilização&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; Bemdoc&nbsp;&nbsp; pela fundação&nbsp; como&nbsp; um&nbsp; veículo&nbsp; para&nbsp; se&nbsp; autopromover&nbsp; e&nbsp; promover&nbsp; os&nbsp; interesses do Estado relativos às populações faveladas. O Bemdoc publicava um boletim informativo&nbsp; para&nbsp; divulgar&nbsp; suas&nbsp; atividades,&nbsp; no&nbsp; qual&nbsp; a&nbsp; fundação&nbsp; insistia&nbsp; em lançar comunicados sobre suas próprias ações. O Bemdoc, usando apropriada- mente os fundos da AID, conforme o acordo, fez vários tipos de melhoria nas favelas. A fundação fez com que estas lhe fossem creditadas por meio de sua presença nas cerimônias de inauguração e colocando placas com a ênfase no seu nome. Os exemplos eram inúmeros.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Além&nbsp; de&nbsp; se&nbsp; promover,&nbsp; a&nbsp; fundação,&nbsp; especialmente&nbsp; em&nbsp; 1966,&nbsp; começou&nbsp; a pressionar tanto o Bemdoc como a AID para que o primeiro operasse em todas as&nbsp; suas&nbsp; favelas&nbsp; –&nbsp; contrariamente&nbsp; à&nbsp; intenção&nbsp; e&nbsp; à&nbsp; carta&nbsp; dos&nbsp; objetivos&nbsp; originários do projeto (ação-pesquisa piloto em duas a quatro favelas). Sendo a única parte&nbsp; da&nbsp; fundação&nbsp; que,&nbsp; na&nbsp; época,&nbsp; funcionava&nbsp; efetivamente,&nbsp; e&nbsp; a&nbsp; única&nbsp; seção rica, essa&nbsp; pressão&nbsp; pode&nbsp; ser&nbsp; vista&nbsp; como&nbsp; um&nbsp; esforço&nbsp; importante&nbsp; para&nbsp; estender os laços de Bemdoc e sua influência substantiva (embora limitada, como real- mente&nbsp; o&nbsp; era)&nbsp; nas&nbsp; favelas&nbsp; àquela&nbsp; proporção&nbsp; muito&nbsp; importante&nbsp; da&nbsp; população favelada da Guanabara que sempre estivera sob o domínio da fundação.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Isso foi especialmente importante em 1966, quando Negrão precisou consolidar sua posição política na Guanabara pela erradicação do pessoal de Lacerda das posições de liderança, cultivando apoio real no seio da população favelada, e tudo isso ao mesmo tempo que evitava constantemente qualquer antagonismo com os segmentos médios e superiores, e acima de tudo não provocando nenhuma resposta do governo central e seus homens&nbsp;&nbsp; de confiança (especialmente o secretário de Segurança Pública)&nbsp; no governo do estado.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Assim,&nbsp; em&nbsp; 1966&nbsp; e&nbsp; por&nbsp; algum&nbsp; tempo&nbsp; mais,&nbsp; a&nbsp; Cohab&nbsp; declinou&nbsp; em&nbsp; importância&nbsp; e&nbsp; se&nbsp; restringiu&nbsp; no&nbsp; alcance&nbsp; de&nbsp; suas&nbsp; atividades,&nbsp; ao&nbsp; passo&nbsp; que&nbsp; a&nbsp; fundação expandiu suas atividades e renovou sua ação nas favelas através de todo o Rio, inicialmente tentando usar o Bemdoc e, depois do desaparecimento deste, por&nbsp; sua&nbsp; própria&nbsp; conta. Começou&nbsp; a&nbsp; ter&nbsp; crescente&nbsp; controle&nbsp; sobre&nbsp; a&nbsp; autorização&nbsp; de melhorias habitacionais e outros problemas, reativou seus centros médicos e educacionais, e tentou exercer um controle sobre as organizações das favelas (ver Medina e Valadares, 1968: 204-5).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A extinção do Bemdoc teve como causa imediata a intransigência, por um lado, do pessoal do Bemdoc e da AID em insistir em que ele devia permanecer como&nbsp;&nbsp; um&nbsp;&nbsp; projeto-piloto&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; pesquisa&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; comunidade&nbsp;&nbsp; operando&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; três ou&nbsp;&nbsp; quatro&nbsp;&nbsp; favelas,&nbsp; ou&nbsp;&nbsp; seja,&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; operação&nbsp;&nbsp; limitada,&nbsp; experimental,&nbsp; técnica. Por outro lado, deveu-se à intransigência da fundação, ou mais provavelmente de seu comando extraordinário, em insistir em que o Bemdoc expandisse suas atividades para muitas favelas, alterando a forma de suas atividades – ou seja, que ele se tornasse uma ampla operação política. Esse objetivo é coerente não apenas com as necessidades do governador de ampliar seu controle na época, mas também com os interesses de controle populista da facção de Yara Vargas no&nbsp; PTB,&nbsp; cuja&nbsp; representante&nbsp; no&nbsp; governo&nbsp; de&nbsp; Negrão&nbsp; era&nbsp; Hortênsia&nbsp; Dunshee de&nbsp; Abranches,&nbsp; então&nbsp; secretária&nbsp; de&nbsp; Serviços&nbsp; Sociais. A&nbsp; intransigência&nbsp; da&nbsp; fundação&nbsp;&nbsp; manifestou-se&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; série&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; conversações&nbsp;&nbsp; instigadoras&nbsp;&nbsp; com&nbsp;&nbsp; a AID,&nbsp; levou&nbsp; à&nbsp; criação&nbsp; de&nbsp; facções&nbsp; dentro&nbsp; do&nbsp; Bemdoc,&nbsp; à&nbsp; retenção&nbsp; de&nbsp; fundos para o pagamento de pessoal, e assim por diante. A AID finalmente encerrou o projeto em dezembro de 1966.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Em&nbsp; um&nbsp; sentido&nbsp; amplo,&nbsp; a&nbsp; extinção&nbsp; resultou&nbsp; da&nbsp; dissonância&nbsp; de&nbsp; um&nbsp; novo contraponto&nbsp; que&nbsp; emergiu&nbsp; com&nbsp; a&nbsp; eleição&nbsp; de&nbsp; 1965:&nbsp; aquele&nbsp; entre&nbsp; o&nbsp; governo militar&nbsp;&nbsp; cada&nbsp;&nbsp; vez&nbsp;&nbsp; mais&nbsp;&nbsp; controlador&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; repressivo&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; governo&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; oposição de&nbsp; base&nbsp; populista&nbsp; de&nbsp; Negrão&nbsp; de&nbsp; Lima,&nbsp; que&nbsp; havia&nbsp; sido&nbsp; eleito&nbsp; pela&nbsp; coalizão PTB-PSD.&nbsp;&nbsp;&nbsp; Por&nbsp; volta&nbsp; do&nbsp; fim&nbsp; dos&nbsp; anos&nbsp; 60,&nbsp; este&nbsp; era&nbsp; o&nbsp; único&nbsp; governo&nbsp; nominal- mente&nbsp; de&nbsp; oposição&nbsp; que&nbsp; restava&nbsp; no&nbsp; Brasil,&nbsp; uma&nbsp; relação&nbsp; dissonante&nbsp; a&nbsp; que voltaremos&nbsp; abaixo.&nbsp; A&nbsp; extinção&nbsp; do&nbsp; Bemdoc&nbsp; foi&nbsp; função&nbsp; do&nbsp; contraponto&nbsp; político que, na época governava a política relativa à favela.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">É&nbsp; interessante&nbsp; observar&nbsp; uma&nbsp; tentativa&nbsp; paralela&nbsp; de&nbsp; utilização&nbsp; do&nbsp; Bemdoc por&nbsp;&nbsp; outro&nbsp;&nbsp; organismo&nbsp;&nbsp; estatal.&nbsp;&nbsp; A&nbsp;&nbsp; Comissão&nbsp;&nbsp; Estadual&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Energia&nbsp;&nbsp; (CEE) &nbsp;&nbsp;foi estabelecida por volta de 1963 durante o regime de Lacerda, oficialmente para fornecer eletricidade às favelas e para tratar de outras necessidades de energia do&nbsp; estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara&nbsp; que&nbsp; não&nbsp; se&nbsp; enquadrassem&nbsp; nas&nbsp; obrigações&nbsp; legais&nbsp; da companhia&nbsp; privada, a&nbsp; Light&nbsp; canadense. A&nbsp; CEE&nbsp; deveria&nbsp; também&nbsp; tentar&nbsp; acabar com a exploração dos moradores da favela (a “indústria das favelas”) por pessoas que possuíam relógios e redes de luz, moradores ou não das favelas, e cobravam taxas exorbitantes pelo uso dessa eletricidade.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Usando&nbsp;&nbsp; como&nbsp;&nbsp; base&nbsp;&nbsp; muitas&nbsp;&nbsp; das&nbsp;&nbsp; favelas&nbsp;&nbsp; organizadas&nbsp;&nbsp; cujas&nbsp;&nbsp; associações haviam&nbsp; sido&nbsp; estabelecidas&nbsp; durante&nbsp; o&nbsp; período&nbsp; de&nbsp; Rios&nbsp; no&nbsp; Serfha,&nbsp; a&nbsp; CEE&nbsp; pro- moveu&nbsp; a&nbsp; organização&nbsp; nas&nbsp; favelas&nbsp; de&nbsp; Comissões&nbsp; de&nbsp; Eletricidade&nbsp; que&nbsp; deviam ser&nbsp;&nbsp; separadas&nbsp;&nbsp; das&nbsp;&nbsp; associações&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; favela&nbsp;&nbsp; existentes.&nbsp;&nbsp; Ela&nbsp;&nbsp; optou&nbsp;&nbsp; explicita- mente&nbsp;&nbsp; por&nbsp;&nbsp; esse&nbsp;&nbsp; procedimento&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; também&nbsp;&nbsp; pelo&nbsp;&nbsp; controle&nbsp;&nbsp; das&nbsp;&nbsp; finanças&nbsp;&nbsp; das comissões&nbsp; por&nbsp; meio&nbsp; de&nbsp; relatórios&nbsp; financeiros&nbsp; quinzenais&nbsp; à&nbsp; CEE,&nbsp; de&nbsp; forma&nbsp; a evitar a corrupção que era sabidamente frequente nas associações dos mora- dores&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; favelas&nbsp;&nbsp; (entrevista&nbsp;&nbsp; com&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; coronel&nbsp;&nbsp; Leitão,&nbsp; diretor&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; CEE,&nbsp; 18&nbsp;&nbsp; de novembro de 1969).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A implantação das Comissões de Luz foi entendida por muitos mora-&nbsp; dores e líderes de favelas como uma tentativa&nbsp; de&nbsp; enfraquecer&nbsp; ou&nbsp; acabar&nbsp; com as associações existentes, de modo a estender o controle estatal às favelas por meio da criação de dissidências e facções no interior das favelas (Primeiro Congresso de Favelas, 1964).39</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Pode-se notar também que, além de pagar pela instalação do equipa- mento de eletricidade estatal (transformadores, postes, relógios etc.) com seu próprio dinheiro, os moradores das favelas tinham que pagar uma taxa extra de 20% sobre o total da conta de luz de cada favela (da Companhia Light), a ser depositada na conta de cada Comissão de Luz, aparentemente para serviços de manutenção. As contas deveriam&nbsp; ser mantidas&nbsp; no Banco&nbsp; da Guanabara. As contas do banco estadual não precisam ser examinadas pelo Tribunal de Contas da União. Ao exigir que os fundos de manutenção fossem deposita- dos no banco estadual, o estado dispunha dos 20% acumulados da CEE e de outras fontes, como uma verba secreta a ser mobilizada para objetivos políticos não divulgados. Uma parcela significativa desses fundos estava sendo obtida pela exploração da necessidade de eletricidade dos moradores das favelas&nbsp; e de sua necessidade de pagar mais por isso do que as pessoas de fora de favela.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Embora a CEE já houvesse estabelecido algumas Comissões de Luz por volta do fim de 1964 (Primeiro Congresso de Favelas, 1964), a mudança na administração&nbsp; do&nbsp; estado,&nbsp; no&nbsp; início&nbsp; de&nbsp; 1966,&nbsp; iniciou&nbsp; um&nbsp; período&nbsp; de rápida irradiação da CEE nas favelas, processo paralelo à revivificação da Fundação Leão XIII.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Por&nbsp; volta&nbsp; de&nbsp; meados&nbsp; de&nbsp; 1966, a&nbsp; CEE&nbsp; dirigiu-se&nbsp; ao&nbsp; Bemdoc&nbsp; requerendo&nbsp; sua assistência&nbsp; para&nbsp; ajudá-la&nbsp; a&nbsp; persuadir&nbsp; 17&nbsp; favelas&nbsp; a&nbsp; aceitarem&nbsp; e&nbsp; cooperarem com&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; CEE.&nbsp; A&nbsp;&nbsp; administração&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; Bemdoc&nbsp;&nbsp; viu&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; pedido&nbsp;&nbsp; como&nbsp;&nbsp; um&nbsp;&nbsp; desafio tanto&nbsp; às&nbsp; suas&nbsp; capacidades&nbsp; de&nbsp; trabalho&nbsp; social&nbsp; como&nbsp; aos&nbsp; seus&nbsp; objetivos&nbsp; de desenvolvimento&nbsp; comunitário. O&nbsp; fato&nbsp; de&nbsp; esse&nbsp; órgão&nbsp; jamais&nbsp; ter&nbsp; trabalhado&nbsp; na verdade&nbsp; com&nbsp; a&nbsp; CEE&nbsp; talvez&nbsp; se&nbsp; deva&nbsp; à&nbsp; rápida&nbsp; deterioração&nbsp; de&nbsp; sua&nbsp; posição&nbsp; e&nbsp; à sua&nbsp; morte&nbsp; iminente. Todavia,&nbsp; o&nbsp; episódio&nbsp; é&nbsp; mais&nbsp; uma&nbsp; vez&nbsp; ilustrativo&nbsp; da&nbsp; tentativa essencialmente provocadora de usar a base técnica, o fundo e os objetivos sociais do Bemdoc para fins de controle político.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O empenho de Negrão para tomar em mãos todas as rédeas no início de 1966 podia ser também percebido na reconcentração do controle sobre as administrações regionais, mediante a reatribuição às repartições públicas centrais do governo do estado de tarefas que haviam sido transferidas às repartições regionais por Lacerda. Apenas mais tarde naquele ano, e&nbsp; em&nbsp; 1967, houve novamente uma descentralização, acompanhada por uma reorganização, tendo já Negrão estabelecido suas linhas de comando.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Essas linhas de comando com relação às favelas são de especial interesse para&nbsp; nosso&nbsp; tema&nbsp; do&nbsp; contínuo&nbsp; controle&nbsp; sobre&nbsp; essas&nbsp; populações.&nbsp; Os&nbsp; elos&nbsp; de comando&nbsp; através&nbsp; da&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII&nbsp; e&nbsp; da&nbsp; CEE&nbsp; já&nbsp; foram&nbsp; discutidos. Outro elo – a tentativa de vigiar a atividade política na favela – vinha da SSS, através de suas subdivisões semiautônomas em cada uma das repartições regionais, para&nbsp; as&nbsp; favelas.&nbsp; Os&nbsp; serviços&nbsp; regionais&nbsp; de&nbsp; bem-estar&nbsp; social&nbsp; deviam&nbsp; ajudar&nbsp; a organizar as associações de favelas, supervisionar suas eleições, aprovar seus estatutos, aprovar&nbsp; reparos&nbsp; nas&nbsp; construções, enquanto&nbsp; as&nbsp; associações&nbsp; deviam ser&nbsp; responsáveis&nbsp; diante&nbsp; deles&nbsp; por&nbsp; levantamentos&nbsp; cadastrais&nbsp; das&nbsp; favelas, pelo controle&nbsp; de&nbsp; reparos&nbsp; nos “barracos”, pela&nbsp; prevenção&nbsp; de&nbsp; novas&nbsp; construções&nbsp; (!!) e&nbsp; assim&nbsp; por&nbsp; diante&nbsp; (Decreto&nbsp; “N”,&nbsp; n.&nbsp; 870,&nbsp; 15&nbsp; de&nbsp; junho,&nbsp; 1967,&nbsp; Diário&nbsp; Oficial&nbsp; [GB], 19 de junho de 1967, ver Apêndice III).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Além disso, de acordo com essa&nbsp; medida,&nbsp; o&nbsp; Estado&nbsp; reconhece&nbsp; apenas uma associação como o corpo representativo oficial da favela. Essa associação deveria representar mais do que 50% da população da favela. Se a associação&nbsp; existente&nbsp; age&nbsp; de&nbsp; má-fé&nbsp; (por&nbsp; exemplo,&nbsp; deixando&nbsp; de&nbsp; apresentar quinzenalmente&nbsp;&nbsp; relatórios&nbsp;&nbsp; financeiros&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp; Estado&nbsp;&nbsp; ou&nbsp;&nbsp; não&nbsp;&nbsp; depositando&nbsp;&nbsp; os fundos&nbsp; da&nbsp; favela&nbsp; especificamente&nbsp; no&nbsp; Banco&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara),&nbsp; a&nbsp; secreta- ria&nbsp; pode&nbsp; designar&nbsp; uma&nbsp; junta&nbsp; da&nbsp; favela&nbsp; de&nbsp; sua&nbsp; própria&nbsp; escolha.&nbsp; O&nbsp; Estado, então,&nbsp; tentou&nbsp; exercer&nbsp; controle&nbsp; substancial&nbsp; sobre&nbsp; as&nbsp; atividades&nbsp; das&nbsp; associações&nbsp; de&nbsp; favelas,&nbsp; bem&nbsp; como&nbsp; sobre&nbsp; suas&nbsp; populações.&nbsp; A&nbsp; realização&nbsp; da&nbsp; medida, como&nbsp; em&nbsp; muitos&nbsp; dos&nbsp; planos&nbsp; relativos&nbsp; a&nbsp; favelas,&nbsp; foi&nbsp; ineficiente&nbsp; e&nbsp; inconsistente,&nbsp; mas&nbsp; a&nbsp; medida&nbsp; em&nbsp; si&nbsp; mesma&nbsp; é&nbsp; indicativa&nbsp; do&nbsp; ponto&nbsp; de&nbsp; vista&nbsp; de&nbsp; que&nbsp; as favelas devem ser controladas.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Os&nbsp; administradores&nbsp; regionais,&nbsp; além&nbsp; disso,&nbsp; deviam&nbsp; criar&nbsp; um&nbsp; conselho&nbsp; de representantes&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; diferentes&nbsp;&nbsp; categorias&nbsp;&nbsp; sociais&nbsp;&nbsp; (organizações&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; classe)&nbsp;&nbsp; – uma&nbsp; de&nbsp; cada&nbsp; negócio,&nbsp; favela&nbsp; ou&nbsp; grupo&nbsp; de&nbsp; interesse.&nbsp; Esses&nbsp; conselhos&nbsp; deviam ajudar a formular e a executar a política administrativa regional. Apenas dois ou&nbsp; três,&nbsp; como&nbsp; na&nbsp; região&nbsp; de&nbsp; Copacabana,&nbsp; chegaram&nbsp; a&nbsp; funcionar.&nbsp; Certamente, um&nbsp; representante&nbsp; de&nbsp; todas&nbsp; as&nbsp; favelas&nbsp; de&nbsp; uma&nbsp; administração&nbsp; regional&nbsp; era muito pouco representativo da diversidade de problemas, interesses, necessidades&nbsp; e&nbsp; objetivos&nbsp; das&nbsp; favelas&nbsp; em&nbsp; muito&nbsp; diferenciadas&nbsp; e&nbsp; de&nbsp; suas&nbsp; populações igualmente&nbsp; diversificadas&nbsp; (ver&nbsp; A.&nbsp; Leeds,&nbsp; 1969).&nbsp; Esse&nbsp; solitário&nbsp; representante parece&nbsp; ter&nbsp; sido&nbsp; completamente&nbsp; apagado&nbsp; pelos&nbsp; outros&nbsp; grupos&nbsp; representativos nos conselhos – nos poucos que funcionaram. Aqui, novamente, somos leva- dos&nbsp; à&nbsp; conclusão&nbsp; de&nbsp; que&nbsp; o&nbsp; objetivo&nbsp; era&nbsp; o&nbsp; controle,&nbsp; de&nbsp; que &nbsp;o&nbsp; pretendido&nbsp; era a&nbsp;&nbsp; cooptação;&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; difusão&nbsp;&nbsp; dos&nbsp;&nbsp; interesses&nbsp;&nbsp; políticos&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; Estado&nbsp;&nbsp; para as&nbsp; favelas&nbsp; por&nbsp; intermédio&nbsp; desses&nbsp; conselhos&nbsp; era&nbsp; desejado&nbsp; pelo&nbsp; governador&nbsp; e seus conselheiros.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Nos últimos anos da década de 60 e nos primeiros da década de 70, sobre- pairam&nbsp; a&nbsp; ameaça&nbsp; e&nbsp; a&nbsp; possibilidade&nbsp; de&nbsp; remoção&nbsp; e&nbsp; relocalização&nbsp; forçada,&nbsp; em massa,&nbsp;&nbsp; contrárias&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp; desejo&nbsp;&nbsp; enfaticamente&nbsp;&nbsp; vociferado&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; insistentemente expresso&nbsp; pelos&nbsp; próprios&nbsp; moradores&nbsp; das&nbsp; favelas &nbsp;e&nbsp; pela&nbsp; Federação&nbsp; das&nbsp; Associações das Favelas da Guanabara (Fafeg), à qual voltaremos mais adiante.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O que é curioso, nessa atmosfera de coerção governamental e de violência desenvolvida na base da política nacional estabelecida pelo BNH com a – digamos, coagida – cooperação do governo estadual, é a contínua tentativa, em pequena escala, de oferecer uma solução alternativa à remoção pelo organismo experimental&nbsp; do&nbsp; Estado, a&nbsp; Codesco&nbsp; (Companhia&nbsp; de&nbsp; Desenvolvimento&nbsp; Comunitário), criada no início de 1968.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; Codesco&nbsp; foi,&nbsp; em&nbsp; parte,&nbsp; uma&nbsp; continuação&nbsp; ou&nbsp; modificação&nbsp; da&nbsp; experiência&nbsp; da&nbsp; AID&nbsp; com&nbsp; o&nbsp; Bemdoc.&nbsp; Em&nbsp; meados&nbsp; de&nbsp; 1966,&nbsp; três&nbsp; especialistas&nbsp; em&nbsp; habitação (ver Wagner, McVoy e Edwards, 1966, doravante chamados “Plano Wagner”) trazidos&nbsp; de Washington&nbsp; pela&nbsp; AID,&nbsp; tendo&nbsp; visitado&nbsp; favelas&nbsp; e&nbsp; revisto&nbsp; os&nbsp; programas&nbsp;&nbsp; urbanos&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; favelas,&nbsp;&nbsp; propuseram&nbsp;&nbsp; suas&nbsp;&nbsp; ações&nbsp;&nbsp; principais,&nbsp;&nbsp; concebi- das&nbsp; como&nbsp; um&nbsp; único&nbsp; plano:&nbsp; o&nbsp; governo&nbsp; deveria&nbsp; (a)&nbsp; promover&nbsp; um&nbsp; programa&nbsp; de ajuda&nbsp; mútua&nbsp; de &nbsp;desenvolvimento&nbsp; habitacional-comunitário&nbsp; e&nbsp; (b)&nbsp; criar&nbsp; uma autoridade&nbsp; da&nbsp; área&nbsp; metropolitana&nbsp; para&nbsp; tratar&nbsp; de&nbsp; todos&nbsp; (e&nbsp; não&nbsp; apenas&nbsp; da favela) os problemas do Rio de Janeiro e suas cidades-satélites mais ou menos importantes&nbsp; (Nova&nbsp; Iguaçu,&nbsp; Nilópolis,&nbsp; São&nbsp; João&nbsp; de&nbsp; Meriti,&nbsp; Duque&nbsp; de&nbsp; Caxias, Niterói,&nbsp; São&nbsp; Gonçalo,&nbsp; cada&nbsp; uma&nbsp; com&nbsp; 400.000-500.000&nbsp; habitantes,&nbsp; e&nbsp; algumas cidades&nbsp; menores&nbsp; como&nbsp; Queimados,&nbsp; Belford&nbsp; Roxo&nbsp; etc.)&nbsp; com&nbsp; uma&nbsp; população, no total, de cerca de 3.000.000 de habitantes espalhada por ambos os lados da baía de Guanabara.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A AID levou ao governo do estado essas propostas. Depois de grande demora e de manobras consideráveis – que podemos entender como relacionadas às manobras&nbsp; políticas&nbsp; do&nbsp; governador&nbsp; no&nbsp; tratamento&nbsp; das &nbsp;propostas&nbsp; em&nbsp; vista&nbsp; de todo&nbsp; o&nbsp; contexto&nbsp; político&nbsp; que&nbsp; circunscrevia&nbsp; o&nbsp; seu&nbsp; acesso&nbsp; ao&nbsp; cargo&nbsp; –,&nbsp; Negrão designou os presidentes da Cohab e da Sursan (Superintendência de Urbanização e Saneamento), a CPO (Coordenação de Planos e Orçamento do Estado da&nbsp; Guanabara, a&nbsp; comissão&nbsp; estadual&nbsp; de&nbsp; planejamento)&nbsp; e&nbsp; a&nbsp; Copeg&nbsp; (Companhia para&nbsp; o&nbsp; Progresso&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara)&nbsp; como&nbsp; uma&nbsp; comissão&nbsp; para&nbsp; avaliar essas propostas e considerar um estudo de viabilidade do programa de ajuda mútua de desenvolvimento comunitário.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Em suma, os três primeiros órgãos, como era de se esperar pelo que dissemos&nbsp; antes&nbsp; sobre&nbsp; um&nbsp; deles,&nbsp; não&nbsp; mostraram&nbsp; interesse. A&nbsp; Cohab,&nbsp; nessa&nbsp; época, estava&nbsp; sob&nbsp; o&nbsp; controle&nbsp; político&nbsp; do&nbsp; BNH,&nbsp; apesar&nbsp; do&nbsp; fato&nbsp; de&nbsp; seu&nbsp; presidente&nbsp; ser designado pelo governador do estado. Nem a Sursan nem a CPO eram de forma alguma&nbsp; órgãos&nbsp; adequados&nbsp; para&nbsp; realizar&nbsp; a&nbsp; tarefa&nbsp; proposta,&nbsp; embora&nbsp; fossem relevantes para alguns de seus aspectos. Foi a Copeg, da qual uma das funções principais&nbsp; era&nbsp; estimular&nbsp; o&nbsp; setor&nbsp; privado&nbsp; –&nbsp; indústria,&nbsp; finanças,&nbsp; construção&nbsp; e afins –, que encampou o projeto com interesse.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Isso é particularmente interessante em vista dos contrapontos que vimos discutindo,&nbsp;&nbsp; porque&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; pensamento&nbsp;&nbsp; econômico&nbsp;&nbsp; orientador&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; liderança&nbsp;&nbsp; da Copeg&nbsp;&nbsp; era&nbsp;&nbsp; institucionalista,&nbsp;&nbsp; apesar&nbsp;&nbsp; das&nbsp;&nbsp; formas&nbsp;&nbsp; monetaristas&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; dos&nbsp;&nbsp; tipos de&nbsp; operação;&nbsp; seus&nbsp; chefes&nbsp; de&nbsp; então&nbsp; haviam&nbsp; tido&nbsp; importantes&nbsp; ligações&nbsp; com ambos&nbsp; os&nbsp; campos&nbsp; do&nbsp; pensamento&nbsp; econômico&nbsp; nas&nbsp; épocas&nbsp; em&nbsp; que&nbsp; estiveram no&nbsp; poder&nbsp; do&nbsp; governo&nbsp; federal. É&nbsp; também&nbsp; significativo&nbsp; que&nbsp; tenha&nbsp; sido&nbsp; a&nbsp; Copeg a&nbsp; tomar&nbsp; para&nbsp; si&nbsp; essa&nbsp; tarefa,&nbsp; porque&nbsp; (a)&nbsp; a&nbsp; Copeg&nbsp; era&nbsp; mais&nbsp; livre&nbsp; do&nbsp; que&nbsp; outros órgãos estatais que tinham uma ligação anterior com as forças agora controla- doras&nbsp; do&nbsp; governo&nbsp; federal&nbsp; e&nbsp; (b)&nbsp; seu&nbsp; quadro&nbsp; de&nbsp; diretores&nbsp; contava&nbsp; com&nbsp; o&nbsp; governador&nbsp; e&nbsp; muitos&nbsp; secretários-chave&nbsp; de&nbsp; seu&nbsp; gabinete&nbsp; (alguns&nbsp; dos&nbsp; quais&nbsp; posteriormente forçados pelo governo federal a se retirar).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Esses pontos nos parecem importantes porque&nbsp; todos&nbsp; os procedimentos de Negrão quanto a essa&nbsp; questão&nbsp; são coerentes&nbsp; com seus&nbsp; esforços&nbsp; de 1956 e 1957, e de seu governo de 1966-1970, para fazer algo útil para as favelas, mas no último período todas as possibilidades foram cada vez mais restringi- das pelo governo federal. Por exemplo, pelo seu controle direto sobre o secretário de Segurança de Negrão, França, que frequentemente contradizia diretamente as ordens e compromissos de Negrão, agindo cada vez mais de forma independente; ou pelas remoções de outros&nbsp; secretários&nbsp; por pressão do governo central; ou pela substituição sob pressão&nbsp; do chefe&nbsp; da Casa&nbsp; Civil de Negrão, Luís Alberto Bahia, antigo populista de tradição mais ou menos getulista, por Carlos Costa, primo do então presidente do Brasil, Marechal Costa e Silva. Sob as condições políticas de então, fazer algo pelas favelas significava também a extensão do controle sobre elas – compreende-se assim a utilização de Negrão, como argumentamos, da Fundação Leão XIII e da CEE, seu Decreto n. 870 e sua presença na inauguração da Ação do Brasil.40</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; Codesco&nbsp; foi&nbsp; estabelecida&nbsp; como&nbsp; uma&nbsp; subsidiária&nbsp; autônoma&nbsp; da&nbsp; Copeg, com&nbsp; membros&nbsp; do&nbsp; quadro&nbsp; desta&nbsp; última&nbsp; ocupando&nbsp; funções&nbsp; de&nbsp; presidente&nbsp; e membros do seu quadro. Baseada no estudo de viabilidade de três favelas da Zona Norte (Brás de Pina, Mata Machado e Morro União), a Codesco, com alguns jovens&nbsp; e&nbsp; imaginativos&nbsp; sociólogos&nbsp; e&nbsp; arquitetos,&nbsp; começou&nbsp; a&nbsp; completar&nbsp; planos de&nbsp; urbanização&nbsp; para&nbsp; duas&nbsp; das&nbsp; três&nbsp; favelas&nbsp; estudadas,&nbsp; e&nbsp; outra&nbsp; acrescentada posteriormente.41&nbsp; A urbanização incluía regularização, pavimentação e iluminação&nbsp; das&nbsp; ruas,&nbsp; instalação&nbsp; de&nbsp; redes&nbsp; de&nbsp; água,&nbsp; esgoto&nbsp; e&nbsp; eletricidade,&nbsp; auxílio financeiro&nbsp; e&nbsp; mínima&nbsp; supervisão&nbsp; da&nbsp; reconstrução&nbsp; de&nbsp;&nbsp; casas&nbsp;&nbsp; (geralmente em mutirão), além da administração da venda de terras que haviam sido expropriadas pelo Estado.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Do &nbsp;ponto&nbsp; de&nbsp; vista&nbsp; dos&nbsp; moradores&nbsp; da&nbsp; favela,&nbsp; o&nbsp; programa&nbsp; da&nbsp; Codesco&nbsp; tem rigoroso sentido econômico. Eles permanecem na área, ou com fácil acesso a seu mercado de trabalho, minimizando assim os custos de transporte. Podem construir&nbsp; casas&nbsp; sólidas&nbsp; mais&nbsp; apropriadas&nbsp; a&nbsp; seus&nbsp; orçamentos&nbsp; domésticos,&nbsp; no ritmo de suas possibilidades econômicas; podem projetá-las de modo adaptado às suas necessidades domésticas e ao seu estilo de vida. Um estudo das atitudes dos&nbsp; moradores&nbsp; com&nbsp; relação&nbsp; à&nbsp; tentativa&nbsp; da&nbsp; Codesco&nbsp; de&nbsp; urbanização&nbsp; mostrou uma reação geralmente favorável ao programa.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">[...]</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O&nbsp; plano&nbsp; da&nbsp; Codesco&nbsp; está&nbsp; intrinsecamente&nbsp; em&nbsp; contradição&nbsp; com&nbsp; as&nbsp; suposições subjacentes e com os interesses imanentes nos tipos de cálculo envolvidos&nbsp;&nbsp; nas&nbsp;&nbsp; abordagens&nbsp;&nbsp; monetaristas&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; governo&nbsp;&nbsp; federal,&nbsp;&nbsp; como&nbsp;&nbsp; representado&nbsp;&nbsp; pelas&nbsp;&nbsp; políticas&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; ações&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; BNH,&nbsp;&nbsp; com&nbsp;&nbsp; relação&nbsp;&nbsp; à&nbsp;&nbsp; “habitação”&nbsp;&nbsp; ou&nbsp;&nbsp; ao “problema&nbsp; da&nbsp; favela”. Tal&nbsp; plano,&nbsp; baseando-se&nbsp; em&nbsp; grande&nbsp; medida&nbsp; nos&nbsp; recursos&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; julgamentos&nbsp;&nbsp; dos&nbsp;&nbsp; moradores&nbsp;&nbsp; das&nbsp;&nbsp; favelas,&nbsp;&nbsp; não&nbsp;&nbsp; é&nbsp;&nbsp; um&nbsp;&nbsp; programa&nbsp;&nbsp; que favoreça os interesses da indústria de construção civil, nem do BNH, embora este&nbsp;&nbsp; último&nbsp;&nbsp; tenha&nbsp;&nbsp; financiado&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; parte&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; Codesco,&nbsp;&nbsp; tampouco&nbsp;&nbsp; das&nbsp;&nbsp; instituições financeiras.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Inerente&nbsp; a&nbsp; essa&nbsp; contradição,&nbsp; nos&nbsp; contrapontos&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; federal&nbsp; e&nbsp; nas dissonâncias&nbsp;&nbsp; monetaristas-institucionalistas&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; temos&nbsp;&nbsp; traçado,&nbsp;&nbsp; estava&nbsp;&nbsp; o surgimento&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; um&nbsp;&nbsp; órgão&nbsp;&nbsp; administrativo&nbsp;&nbsp; federal&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; oposição&nbsp;&nbsp; à&nbsp;&nbsp; Codesco. É&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; curiosa&nbsp;&nbsp; ironia&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; Chisam&nbsp;&nbsp; –&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; Coordenação&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Habitação&nbsp;&nbsp; de Interesse&nbsp; Social*&nbsp; da&nbsp; Área&nbsp; Metropolitana&nbsp; do&nbsp; Grande&nbsp; Rio&nbsp; de&nbsp; Janeiro&nbsp; –&nbsp; se&nbsp; tenha desenvolvido&nbsp; a&nbsp; partir&nbsp; de,&nbsp; ou&nbsp; conforme&nbsp; a,&nbsp; segunda&nbsp; recomendação&nbsp; do&nbsp; “Rela- tório&nbsp; Wagner”,&nbsp; aquela&nbsp; relativa&nbsp; a&nbsp; uma&nbsp; autoridade&nbsp; metropolitana&nbsp; para&nbsp; tratar conjuntamente de alguns problemas em escala regional, inclusive favelas e suas causas. É claro que a tentativa do “Relatório Wagner” era um plano que envolvia dois níveis de ação baseados em um ponto de vista comum e em objetivos, estratégias e formas de implementação comuns. É claro também que o programa de favelas foi proposto não apenas&nbsp; como&nbsp; uma experiência de reabilitação, mas&nbsp; como&nbsp; modelo-base,&nbsp; generalizável,&nbsp; para&nbsp; o&nbsp; tratamento da maior parte das favelas dentro de um quadro de referência de planeja- mento metropolitano racional e reorganização regional.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A&nbsp; Chisam,&nbsp; criada&nbsp; pelo&nbsp; Decreto&nbsp; Federal&nbsp; n.&nbsp; 62.654,&nbsp; de&nbsp; 3&nbsp; de&nbsp; maio&nbsp; de&nbsp; 1968, quatro&nbsp;&nbsp; meses&nbsp;&nbsp; depois&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; criação&nbsp;&nbsp; da&nbsp;&nbsp; Codesco,&nbsp;&nbsp; tinha&nbsp;&nbsp; como&nbsp;&nbsp; diretor-chefe nessa&nbsp; época&nbsp; o&nbsp; então&nbsp; ministro&nbsp; do&nbsp; Interior,&nbsp; general&nbsp; Afonso&nbsp; de&nbsp; Albuquerque Lima, sob cuja égide também ficou o BNH. Foi criada, ao que se disse (Chisam, 1967:&nbsp; 78),&nbsp; em&nbsp; função&nbsp; do&nbsp; reconhecimento&nbsp; de&nbsp; que&nbsp; o&nbsp; problema&nbsp; da&nbsp; favela&nbsp; – encontrado&nbsp; praticamente&nbsp; em&nbsp; toda&nbsp; cidade&nbsp; do&nbsp; Brasil,&nbsp; não&nbsp; apenas&nbsp; no&nbsp; Rio&nbsp; – é&nbsp; um&nbsp; problema&nbsp; nacional, que&nbsp; requer&nbsp; ação&nbsp; nacional&nbsp; para&nbsp; resolver&nbsp; problemas criados&nbsp;&nbsp; pela&nbsp;&nbsp; falta&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; recursos,&nbsp;&nbsp; pela&nbsp;&nbsp; diversidade&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; órgãos,&nbsp;&nbsp; por&nbsp;&nbsp; políticas habitacionais&nbsp; inadequadas&nbsp; por&nbsp; outros&nbsp; fatores&nbsp; que&nbsp; contribuem&nbsp; para&nbsp; o&nbsp; surgi- mento&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; favelas.&nbsp;&nbsp; Reconhecia-se,&nbsp;&nbsp; finalmente,&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; esses&nbsp;&nbsp; problemas&nbsp;&nbsp; não podiam&nbsp;&nbsp; ser&nbsp;&nbsp; resolvidos&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; nível&nbsp;&nbsp; local,&nbsp;&nbsp; municipal&nbsp;&nbsp; ou&nbsp;&nbsp; estadual,&nbsp;&nbsp; mas&nbsp;&nbsp; apenas&nbsp; em&nbsp; nível&nbsp; nacional,&nbsp; em&nbsp; cooperação&nbsp; com&nbsp; entidades&nbsp; estaduais&nbsp; ou&nbsp; municipais.&nbsp;&nbsp; Em&nbsp;&nbsp; parte,&nbsp;&nbsp; as&nbsp;&nbsp; soluções&nbsp;&nbsp; pareciam&nbsp;&nbsp; envolver&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; controle&nbsp;&nbsp; dos&nbsp;&nbsp; fluxos migratórios,&nbsp; o&nbsp; que&nbsp; não&nbsp; podia&nbsp; ser&nbsp; resolvido&nbsp; no&nbsp; nível&nbsp; dos&nbsp; governos&nbsp; estaduais Não&nbsp; ficou&nbsp; claro&nbsp; por&nbsp; que&nbsp; apenas&nbsp; a&nbsp; Chisam&nbsp; foi&nbsp; criada,&nbsp; não&nbsp; tendo&nbsp; sido&nbsp; criados organismos&nbsp;&nbsp; análogos&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; outras&nbsp;&nbsp; importantes&nbsp;&nbsp; áreas&nbsp;&nbsp; urbanas,&nbsp;&nbsp; ao&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; nos consta.&nbsp; As&nbsp; razões&nbsp; parecem&nbsp; ser&nbsp; principalmente&nbsp; políticas,&nbsp; como&nbsp; indicamos, uma&nbsp;&nbsp; vez&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; outras&nbsp;&nbsp; cidades,&nbsp; como&nbsp;&nbsp; Recife&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; Salvador,&nbsp; têm&nbsp;&nbsp; conjuntos&nbsp;&nbsp; de áreas&nbsp; invadidas&nbsp; por&nbsp; posseiros&nbsp; de&nbsp; tamanho&nbsp; comparável&nbsp; às&nbsp; do&nbsp; Rio&nbsp; e&nbsp; geral- mente&nbsp; em&nbsp; piores&nbsp; condições. A&nbsp; criação&nbsp; do&nbsp; BNH&nbsp; e&nbsp; de&nbsp; seu&nbsp; Sistema&nbsp; Financeiro da Habitação (ibid.: 7) abriu novas possibilidades, inclusive a da Chisam.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">[...]</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">No&nbsp; Rio&nbsp; de&nbsp; Janeiro,&nbsp; existem&nbsp; 283&nbsp; favelas,&nbsp; a&nbsp; maioria&nbsp; delas&nbsp; –&nbsp; 36&nbsp; (sic!)&nbsp; – localizada&nbsp; na&nbsp; 6ª&nbsp; Região Administrativa&nbsp; [isso&nbsp; está&nbsp; errado;&nbsp; havia&nbsp; apenas 16 nessa região – ver Cedug, 1963, Apêndice 4: 60], que abrange os bairros de Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico e Gávea, precisamente a região mais aristocrática da Guanabara, onde se situam as casas mais luxuosas, as terras mais valorizadas e os clubes mais finos (...)</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Mais adiante apresentamos um artigo de Gilberto Coufal, diretor do BNH e coordenador da Chisam, no qual são estudadas as discussões sobre urbanização e remoção, e se conclui afirmando que a política seguida&nbsp; pelo &nbsp;Governo&nbsp; tornará&nbsp; possível&nbsp; a&nbsp; modificação&nbsp; do&nbsp; programa físico e estético das áreas faveladas, integrando terras por elas ocupadas aos bairros em que se situam, e transformando a mentalidade de&nbsp; seus&nbsp; moradores&nbsp; que, não&nbsp; se&nbsp; considerando&nbsp; mais&nbsp; como&nbsp; favelados, serão também vistos pela comunidade como cidadãos normais.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Outro&nbsp; ponto&nbsp; que&nbsp; vale&nbsp; a&nbsp; pena&nbsp; assinalar&nbsp; é&nbsp; que&nbsp; a&nbsp; Chisam&nbsp; estabeleceu&nbsp; como política,&nbsp; em&nbsp; suas&nbsp; primeiras&nbsp; reuniões,&nbsp; que&nbsp; ela&nbsp; seria&nbsp; um&nbsp; corpo&nbsp; coordenador, porém não executivo dos trabalhos. A Chisam orientaria:</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">...&nbsp; o&nbsp; trabalho&nbsp; conjunto&nbsp; de&nbsp; setores&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; de&nbsp; tal&nbsp; forma&nbsp; que&nbsp; suas tarefas&nbsp; se&nbsp; complementem&nbsp; umas&nbsp; às&nbsp; outras.&nbsp; Para&nbsp; a&nbsp; execução&nbsp; des- sas&nbsp; tarefas&nbsp; específicas&nbsp; deverão&nbsp; ser&nbsp; creditados&nbsp; por&nbsp; nomeação&nbsp; dos governos dos dois estados [Rio de Janeiro e Guanabara] aqueles órgãos especializados&nbsp; em&nbsp; cada&nbsp; setor&nbsp; de&nbsp; atividade&nbsp; necessária&nbsp; para&nbsp; o&nbsp; desenvolvimento&nbsp; de&nbsp; cada&nbsp; tipo&nbsp; de&nbsp; programa&nbsp; a&nbsp; ser&nbsp; executado&nbsp; (Chisam, 1969: 13).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">No&nbsp; âmbito&nbsp; dessa&nbsp; política,&nbsp; os&nbsp; seguintes&nbsp; organismos&nbsp; foram&nbsp; autorizados&nbsp; a agir&nbsp; na&nbsp; esfera&nbsp; social:&nbsp; a&nbsp; SSS&nbsp; da&nbsp; Guanabara, a&nbsp; Fundação&nbsp; Leão&nbsp; XIII, a&nbsp; Secretaria de&nbsp; Trabalho&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; Serviços&nbsp;&nbsp; Sociais&nbsp;&nbsp; do&nbsp;&nbsp; Rio&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; Janeiro&nbsp;&nbsp; e&nbsp; Ação&nbsp;&nbsp; Comunitária&nbsp;&nbsp; do Brasil. Para agir na criação de novas habitações: as Cohabs de ambos os esta- dos.&nbsp; Para atuar na produção de casas nas favelas para a substituição dos barracos:&nbsp; Codesco&nbsp; (apenas&nbsp; na&nbsp; Guanabara;&nbsp; nenhum&nbsp; órgão&nbsp; foi&nbsp; designado&nbsp; para&nbsp; o estado&nbsp; do&nbsp; Rio,&nbsp; o&nbsp; que&nbsp; indica&nbsp; que&nbsp; a&nbsp; Chisam&nbsp; não&nbsp; tinha&nbsp; intenção&nbsp; de&nbsp; prosseguir a urbanização lá).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">[...]</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Essas ações podem ser rapidamente resumidas. Elas consistem na remoção total de pelo menos as seguintes favelas – (todas na Zona Sul): Jóquei Clube (cerca de 200 pessoas), Rio Rainha (+ 200), Alto Solar (+ 600), Ilha das Dragas (+ 1.800), Babilônia-Chapéu Mangueira (+ 3.500), Macedo Sobrinho (+ 4.000), Praia do Pinto (+ 7.000), Catacumba (+ 12.000) e partes do Parque Proletário no 1 da Gávea – um total de cerca de 30.000 pessoas. Estas foram relocalizadas em projetos como a Cidade de Deus, no longínquo e inacessível distrito de Jacarepaguá; na Cidade Alta, no distante Cordovil; no conjunto do Guaporé, e outros. Aqueles que não tinham capacidade de pagar por essas unidades habitacionais eram mandados “temporariamente” para os Centros Habitacionais de Bem-Estar Social e para os mal equipados albergues.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Os efeitos dessas remoções e relocalizações – em todos os casos forçadas, contrárias&nbsp; à&nbsp; vontade&nbsp; dos&nbsp; moradores&nbsp; e&nbsp; em&nbsp; alguns&nbsp; casos&nbsp; acompanhadas&nbsp; de ação policial, tratores, fogo (que se dizia acidental) e outras formas de pressão, incluindo&nbsp; ameaças&nbsp; de&nbsp; não&nbsp; pagamento&nbsp; das&nbsp; indenizações&nbsp; pelas&nbsp; casas&nbsp; (isto&nbsp; é, propriedade privada dos moradores da favela) destruídas – foram a profunda desestruturação, para&nbsp; um&nbsp; grande&nbsp; número&nbsp; de&nbsp; pessoas, de&nbsp; sua&nbsp; organização&nbsp; de vida&nbsp; e&nbsp; um&nbsp; desequilíbrio&nbsp; nas&nbsp; estratégias&nbsp; domésticas&nbsp; para&nbsp; lidar&nbsp; com&nbsp; a&nbsp; difícil estrutura&nbsp; econômica&nbsp; que&nbsp; os&nbsp; moradores&nbsp; das&nbsp; favelas&nbsp; tiveram&nbsp; que&nbsp; enfrentar (ver&nbsp; A.&nbsp; Leeds,&nbsp; 1970:&nbsp; 243-48).&nbsp; Particularmente&nbsp; agudo&nbsp; foi&nbsp; o&nbsp; declínio&nbsp; na&nbsp; renda, acompanhado&nbsp; de&nbsp; uma&nbsp; desconcertante&nbsp; alta&nbsp; dos&nbsp; custos,&nbsp; especialmente&nbsp; das amortizações e dos transportes.50&nbsp; Os ex-moradores das favelas são engolfados por&nbsp; uma&nbsp; interminável&nbsp; onda&nbsp; de&nbsp; novos&nbsp; gastos, contra&nbsp; a&nbsp; qual&nbsp; a&nbsp; política&nbsp; salarial do&nbsp; governo&nbsp; federal,&nbsp; junto&nbsp; com&nbsp; a&nbsp; correção&nbsp; monetária&nbsp; sobre&nbsp; as&nbsp; amortizações, torna&nbsp; impossível&nbsp; qualquer&nbsp; reação&nbsp; para&nbsp; uma&nbsp; grande&nbsp; parcela&nbsp; deles. Sua&nbsp; única solução é voltar para as favelas, ou criar novas delas em outro lugar. A situação é vividamente descrita em um longo e detalhado artigo do Correio da Manhã51 (21/1/1971), que transcrevemos em parte:</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">[...]</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Em&nbsp;&nbsp; suma,&nbsp; a&nbsp;&nbsp; Chisam,&nbsp; quando&nbsp;&nbsp; criada&nbsp;&nbsp; –&nbsp;&nbsp; seja&nbsp;&nbsp; deliberadamente&nbsp;&nbsp; com&nbsp;&nbsp; este fim&nbsp; ou&nbsp; não&nbsp; –,&nbsp; representou&nbsp; de&nbsp; facto&nbsp; uma&nbsp; proposta&nbsp; oposta&nbsp; à&nbsp; ênfase&nbsp; de&nbsp; Negrão e&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; na&nbsp; urbanização:&nbsp; a&nbsp; da&nbsp; construção&nbsp; habitacional&nbsp; em&nbsp; massa&nbsp; para permitir&nbsp; a&nbsp; relocalização&nbsp; dos&nbsp; moradores&nbsp; da&nbsp; favela.52&nbsp;&nbsp; A&nbsp; oposição&nbsp; das&nbsp; aborda- gens foi claramente reconhecida pelo pessoal da Codesco (Machado e Santos, 1969: 55):</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Os&nbsp; dois&nbsp; órgãos&nbsp; responsáveis&nbsp; pela&nbsp; política&nbsp; habitacional&nbsp; das&nbsp; favelas na&nbsp;&nbsp; Guanabara&nbsp;&nbsp; têm&nbsp;&nbsp; poderes&nbsp;&nbsp; básicos&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; princípios&nbsp;&nbsp; diametralmente opostos.&nbsp; Essa&nbsp; situação&nbsp; indica&nbsp; não&nbsp; uma&nbsp; flexibilidade&nbsp; e&nbsp; adaptação&nbsp; à realidade por parte do poder público [le Pouvoir], mas sobretudo sua ambiguidade.&nbsp; E,&nbsp; para&nbsp; complicar&nbsp; ainda&nbsp; mais&nbsp; os&nbsp; dados&nbsp; do&nbsp; problema, a&nbsp; plataforma&nbsp; da&nbsp; campanha&nbsp; do&nbsp; atual&nbsp; governador&nbsp; (eleito&nbsp; em&nbsp; 1965) desenvolveu-se em torno da defesa da urbanização, ao passo que a Chisam, órgão do governo central, opta pela expulsão, muito embora de modo mais flexível do que os primeiros esforços da Cohab.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">A criação de dois organismos, com um intervalo de poucos meses entre&nbsp; um e outro, que tratam dos mesmos problemas, ainda&nbsp; que&nbsp; com&nbsp; orientações radicalmente diferentes e bases de apoio tão nitidamente diferentes, é um fenômeno muito revelador não apenas com relação à favela, ou, em um âmbito mais geral, com relação à política social e econômica, mas do conflito nas&nbsp; políticas&nbsp; nacionais&nbsp; brasileiras. A&nbsp; criação&nbsp; da&nbsp; Chisam,&nbsp; um&nbsp; braço&nbsp; do&nbsp; BNH&nbsp; e do&nbsp; Ministério&nbsp; do&nbsp; Interior,&nbsp; reflete&nbsp; a&nbsp; institucionalização&nbsp; a&nbsp; nível&nbsp; nacional&nbsp; das políticas&nbsp; econômicas&nbsp; e&nbsp; sociais&nbsp; e&nbsp; uma&nbsp; ideologia&nbsp; que&nbsp; funciona&nbsp; para&nbsp; intensificar&nbsp;&nbsp; o&nbsp;&nbsp; controle&nbsp;&nbsp; exercido&nbsp;&nbsp; pelas&nbsp;&nbsp; elites,&nbsp; servir&nbsp;&nbsp; a&nbsp;&nbsp; seus&nbsp;&nbsp; interesses&nbsp;&nbsp; políticos&nbsp;&nbsp; e econômicos, concentrar a riqueza em poucas mãos e para controlar e reprimir qualquer&nbsp;&nbsp; pessoa&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; busque&nbsp;&nbsp; impedir&nbsp;&nbsp; esses&nbsp;&nbsp; desenvolvimentos.&nbsp; A&nbsp;&nbsp; política relativa à favela é um espelho de todas essas institucionalizações, operações, controles&nbsp; e&nbsp; repressões;&nbsp; na&nbsp; área&nbsp; do&nbsp; Rio,&nbsp; a&nbsp; Chisam&nbsp; é&nbsp; o&nbsp; agente&nbsp; da&nbsp; hierarquia nacional, como o BNH o é para o país como um todo.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Como&nbsp; um&nbsp; toque&nbsp; final&nbsp; desse&nbsp; processo&nbsp; de&nbsp; controle&nbsp; e&nbsp; repressão, crescente&nbsp; e centralizado, e&nbsp; a&nbsp; correspondente&nbsp; política&nbsp; relativa&nbsp; à&nbsp; favela&nbsp; em&nbsp; âmbitos&nbsp; nacional&nbsp; e&nbsp; estadual, podemos&nbsp; voltar&nbsp; rapidamente&nbsp; à&nbsp; Fafeg. A&nbsp; Fafeg&nbsp; reagiu&nbsp; asperamente&nbsp; às&nbsp; políticas&nbsp; da&nbsp; Chisam,&nbsp; como&nbsp; reagira&nbsp; às&nbsp; do&nbsp; CEE&nbsp; e&nbsp; do&nbsp; Decreto&nbsp; n.&nbsp; 870. A&nbsp; Federação&nbsp; das&nbsp; Associações&nbsp; das&nbsp; Favelas&nbsp; do&nbsp; Estado&nbsp; da&nbsp; Guanabara,&nbsp; a&nbsp; única confederação&nbsp; de&nbsp; favelas&nbsp; existente&nbsp; em&nbsp; âmbito&nbsp; estadual, foi&nbsp; fundada&nbsp; em&nbsp; 1964. Por volta de 1968, depois de alguns altos e baixos, ela se tornara um corpo cada vez mais articulado e de peso, representando ao menos cem favelas do Rio.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">[...]</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Coerente&nbsp; com&nbsp; as&nbsp; posições&nbsp; tomadas&nbsp; no&nbsp; congresso,&nbsp; a&nbsp; Fafeg&nbsp; tratou&nbsp; imediatamente&nbsp; de&nbsp; impedir&nbsp; a&nbsp; ação&nbsp; contra&nbsp; a&nbsp; primeira&nbsp; favela&nbsp; (Ilha&nbsp; das&nbsp; Dragas, próxima&nbsp; a&nbsp; um&nbsp; clube&nbsp; social&nbsp; de&nbsp; elite&nbsp; na&nbsp; lagoa&nbsp; Rodrigo&nbsp; de&nbsp; Freitas, na&nbsp; Zona&nbsp; Sul) a&nbsp; ser&nbsp; ameaçada&nbsp; de&nbsp; remoção&nbsp; pela&nbsp; Chisam,&nbsp; que&nbsp; agia&nbsp; por&nbsp; intermédio&nbsp; de&nbsp; seus órgãos&nbsp; executivos&nbsp; subordinados. Quase&nbsp; que&nbsp; imediatamente, todos&nbsp; os&nbsp; direto- res&nbsp;&nbsp; foram&nbsp;&nbsp; presos&nbsp;&nbsp; em&nbsp;&nbsp; uma&nbsp;&nbsp; ação&nbsp;&nbsp; policial&nbsp;&nbsp; que&nbsp;&nbsp; incluiu&nbsp;&nbsp; sua&nbsp;&nbsp; localização&nbsp;&nbsp; nas favelas e grande coordenação para que a pressão anterior de um não permitisse aos&nbsp; outros&nbsp; escaparem. Estava&nbsp; bastante&nbsp; claro&nbsp; que&nbsp; a&nbsp; polícia&nbsp; estava&nbsp; muito&nbsp; bem informada&nbsp; com&nbsp; relação&nbsp; às&nbsp; identidades&nbsp; dos&nbsp; líderes&nbsp; (nunca&nbsp; ocultadas),&nbsp; suas atividades&nbsp; e&nbsp; localização&nbsp; em&nbsp; momentos&nbsp; específicos.&nbsp; Obviamente,&nbsp; os&nbsp; líderes foram&nbsp; mantidos&nbsp; incomunicáveis&nbsp; por&nbsp; alguns&nbsp; dias,&nbsp; e&nbsp; ameaçados&nbsp; de&nbsp; severas consequências&nbsp; caso&nbsp; a&nbsp; oposição&nbsp; continuasse.54&nbsp;&nbsp;&nbsp; Os&nbsp; homens&nbsp; foram&nbsp; soltos&nbsp; por causa da pressão da ala mais liberal da Igreja católica no Rio, que, com outros setores da Igreja por todo o Brasil orientados para a ação social, só começaram a ser severamente reprimidos pelo governo federal em 1969.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Desde&nbsp; a&nbsp; prisão&nbsp; em&nbsp; massa,&nbsp; as&nbsp; atividades&nbsp; públicas&nbsp; da&nbsp; Fafeg&nbsp; praticamente cessaram&nbsp;&nbsp; e&nbsp;&nbsp; não&nbsp;&nbsp; houve&nbsp;&nbsp; nenhuma&nbsp;&nbsp; tentativa&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; impedir&nbsp;&nbsp; as&nbsp;&nbsp; remoções&nbsp;&nbsp; em andamento&nbsp; das&nbsp; favelas&nbsp; da&nbsp; Zona&nbsp; Sul. Se&nbsp; tal&nbsp; esforço&nbsp; tivesse&nbsp; sido&nbsp; feito, aquelas tentativas&nbsp;&nbsp; de&nbsp;&nbsp; impedir&nbsp;&nbsp; tal&nbsp;&nbsp; remoção&nbsp;&nbsp; teriam&nbsp;&nbsp; sido&nbsp;&nbsp; enfrentadas&nbsp; &nbsp;por&nbsp;&nbsp; soldados armados&nbsp; com&nbsp; revólveres,&nbsp; como&nbsp; aconteceu&nbsp; em&nbsp; 1964&nbsp; quando&nbsp; o&nbsp; pessoal&nbsp; da Fafeg&nbsp; tentou&nbsp; impedir&nbsp; a&nbsp; expulsão&nbsp; do&nbsp; Morro&nbsp; do&nbsp; Pasmado,&nbsp; a&nbsp; primeira&nbsp; favela a ser removida pela Cohab (reportado nos jornais da época).</span></p> 
= <span style="line-height:normal">'''Conclusão'''</span> =
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Os fatos e as relações apresentados neste trabalho para as favelas da Guanabara são, em certo sentido, apenas um diagnóstico da progressão de modelos maiores de eventos e relações na estrutura social brasileira como um todo.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O recente enfraquecimento da Fafeg, as remoções de favelas que prosseguem, as intervenções legais e administrativas de órgãos estatais, tudo isso acelerou o processo de eliminação dos meios pelos quais as favelas podem se comunicar com os níveis administrativos do Estado. A situação reflete as atuais tendências políticas elitistas nas quais a comunicação se tornou unilateral, de cima para baixo, para todo mundo. A coerção e repressão dos moradores de favela, assim como de seus líderes, e a erradicação das próprias comunidades, em um total desrespeito pela vontade explícita das pessoas envolvidas e pela consideração de alternativas, equipara-se com a coerção e a repressão, com o uso amplamente documentado de tortura, dos camponeses e suas ligas e sindicatos, dos sindicatos operários, dos estudantes e suas entidades, da Igreja e seus membros socialmente ativos, dos intelectuais e suas organizações e meios de expressão, dos jornais, dos negócios, das tribos indígenas (cujo etnocídio é justificado pelo interesse nacional por leis recentemente promulgadas que permitem remoções forçadas e ressocialização não diferentes daquelas impostas aos moradores de favela).</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">O esboço da história dos últimos trinta anos mostrou a correlação próxima entre forma, conteúdo e modalidades operacionais do governo federal com seus representantes em dado momento e as políticas administrativas dos governos locais (por exemplo, o Estado) com relação às favelas. Como a forma, as ideologias e os modos de operação, também mudaram as políticas administrativas locais. Assim, onde houve mudanças no que se chama “populismo controlado” (Estado Novo de Vargas; as fases iniciais do governo Jânio Quadros), “populismo democrático” (governo Vargas, 1951-54; Kubitschek; a segunda fase do governo de Quadros; o governo Goulart), o “elitismo nacionalista” (a presidência de Dutra) e o “elitismo de favorecimento dos interesses estrangeiros” (todos os governos desde 1964), essas mudanças têm seu paralelo em nível local, como mostramos.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">&nbsp;Conforme a orientação do governo central exigiu mais ou menos controle sobre as massas, assim se manifestou essa exigência mutável em várias formas e operações de política e de ação com relação às favelas. Contudo, em qualquer governo, por mais populista e “democrático” que seja, um forte elemento de controle e manipulação sempre foi importante por pelo menos três razões. Primeiro, em pequena escala, o controle e a manipulação foram&nbsp; necessários por simples razões táticas e políticas, isto é, eleitorais. Segundo, o controle foi cada vez mais necessário porque as populações faveladas sabidamente já representavam uma ameaça à ordem política e social estabelecida. Terceiro, o controle e a manipulação foram necessários em termos da manutenção das fronteiras de classe por parte daqueles que têm acesso aos governos federal e estadual, dos quais todos, praticamente sem exceção, foram membros de uma ou outra facção de elite das classes superiores no Brasil. Em determinados momentos e locais, o controle tem sua rationale estabelecida com base nas várias combinações dessas razões, embora com pesos diferentes, dependendo do modelo político vigente na época.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Assim, as oscilações entre as várias formas de governo – às vezes abrindo superficialmente maiores possibilidades para as populações faveladas, em outras fechando-as novamente – deixaram as favelas e, mais geral e precisamente, o proletariado sem uma voz significativa nas decisões sobre seus próprios destinos.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">Todas as tentativas feitas nesse período de trinta anos para garantir um grau de liberdade ou responsabilidade aos moradores de favelas ou ao proletariado como um todo têm se deparado sempre com o simples abandono ou falta de continuidade, ou com a oposição direta na forma de políticas e ações opostas que serviram, ambas, para anular essas iniciativas. Dada a falta generalizada de resposta e responsabilidade governamentais, os moradores da favela são forçados a continuar procurando melhorar sua condição através dos canais racionalmente elaborados, paternalistas, individualistas, para a obtenção de favores e a satisfação de interesses mediante a troca de benefícios. Quando tentativas de articulação de interesses das massas são tão sistematicamente reprimidas, o avanço pessoal, da favela ou da classe deve se desenvolver em níveis menos ameaçadores, até que a remoção de barreiras permita um fluxo ascendente de comunicação acerca de valores, opções e decisões, e um fluxo descendente de reconhecimento, serviços e bens.</span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p> 
= <span style="line-height:normal">Referência:&nbsp;</span> =
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:normal">LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social. In: LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth; LIMA, Nísia Trindade (org.). A sociologia do Brasil urbano. 2ª edição – Editora Fiocruz. Rio de Janeiro, 2015.&nbsp; p. 243 – 325.</span></p>  
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