Memórias do Morro Santa Marta: mudanças entre as edições

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Uma vez situado este que vos fala, deixemos fluir a história:
Uma vez situado este que vos fala, deixemos fluir a história:


= O Santa Marta =
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O que me faz sustentar que o Santa Marta existe desde 1939 é o depoimento de Dona Madalena, que diz que chegou com 19 anos em 1941. “''Ali não tinha nada. Já tinha morador, mas morador escondido. Tinha o Saldanha, que é que vivia aqui nesse matoque era escondido... Aqui tudo era mato, Tudo!''”
O que me faz sustentar que o Santa Marta existe desde 1939 é o depoimento de Dona Madalena, que diz que chegou com 19 anos em 1941.
 
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Ora, se uma jovem catequista de 19 anos se instalou neste lugar, é porque já existia uma comunidade. A própria Dona Madalena afirma mais adiante na sua entrevista que o Sr. Próculo já morava por aqui. E a casa do Seu Próculo foi a primeira casa bem estruturada do Santa Marta, ela se destacava na paisagem. Tanto é que ali funcionava o telefone público da comunidade, dali saíam os anúncios do alto-falante. Então isso é sinal de que, no mínimo mais de um ano antes, já havia moradores nestas terras. Assumo, por- tanto, que o Santa Marta começou a ser ocupado no final dos anos 30 (38/39) e que aparece para o bairro a partir de 41, quando os padres jesuítas começam a frequentar o local.
“''Ali não tinha nada. Já tinha morador, mas morador escondido. Tinha o Saldanha, que é que vivia aqui nesse mato que era escondido... Aqui tudo era mato, Tudo!''”
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Ora, se uma jovem catequista de 19 anos se instalou neste lugar, é porque já existia uma comunidade. A própria Dona Madalena afirma mais adiante na sua entrevista que o Sr. Próculo já morava por aqui. E a casa do Seu Próculo foi a primeira casa bem estruturada do Santa Marta, ela se destacava na paisagem. Tanto é que ali funcionava o telefone público da comunidade, dali saíam os anúncios do alto-falante. Então isso é sinal de que, no mínimo mais de um ano antes, já havia moradores nestas terras. Assumo, por&nbsp;tanto, que o Santa Marta começou a ser ocupado no final dos anos 30 (38/39) e que aparece para o bairro a partir de 41, quando os padres jesuítas começam a frequentar o local.


Os jesuítas realizavam um trabalho social de atendimento ambulatorial na Rua Eduardo Guinle, no mesmo quarteirão onde está localizada a Igreja de Santo Inácio, em Botafogo. No ambulatório, que atendia a população pobre do bairro, começaram a aparecer principalmente mulheres, empregadas domésticas que davam como endereço a Rua São Clemente 320. Esse é o número que fica na altura da entrada para o Santa Marta. Dessa forma, o trabalho social foi estendido até a favela, como conta Padre Veloso:
Os jesuítas realizavam um trabalho social de atendimento ambulatorial na Rua Eduardo Guinle, no mesmo quarteirão onde está localizada a Igreja de Santo Inácio, em Botafogo. No ambulatório, que atendia a população pobre do bairro, começaram a aparecer principalmente mulheres, empregadas domésticas que davam como endereço a Rua São Clemente 320. Esse é o número que fica na altura da entrada para o Santa Marta. Dessa forma, o trabalho social foi estendido até a favela, como conta Padre Veloso:
 
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“''O ambulatório era para todas as pessoas carentes aqui de Botafogo. Mas começou a aparecer gente que morava ali no morro Santa Marta. Ainda nem se falava em favela propriamente dita! Porque não se via nada. Tinha uns barracos embaixo de umas árvo- res. Essas árvores os encobriam. Da São Clemente só se via árvore, não se sabia que ali tinha uma favela. Então começou, essa gente do morro, a aparecer por lá! Aí é que nós soubemos que lá tinha uma favela! Aí começamos então a visitá-la''”.
“''O ambulatório era para todas as pessoas carentes aqui de Botafogo. Mas começou a aparecer gente que morava ali no morro Santa Marta. Ainda nem se falava em favela propriamente dita! Porque não se via nada. Tinha uns barracos embaixo de umas árvores. Essas árvores os encobriam. Da São Clemente só se via árvore, não se sabia que ali tinha uma favela. Então começou, essa gente do morro, a aparecer por lá! Aí é que nós soubemos que lá tinha uma favela! Aí começamos então a visitá-la''”.
 
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Dona Laura do Rego Monteiro, que dirigia a Ponsa – Pequena Obra Nossa Senhora Auxiliadora, traz novas informações. Conta que um dia chegou lá Joana para tratar a filha, que era tuberculosa. A filha morava no interior, mas lá não havia tratamento. O ambulatório costumava cadastrar as pessoas a quem dava assistência, mas a Joana não queria dizer onde morava. Acabou reconhecendo que era no morro. O morro, naquele tempo, era mata fechada, como ainda é no pedaço atrás do colégio Santo Inácio. A irmã de Dona Laura e uma amiga foram ver onde morava a Joana. Voltaram contando que ela morava num barraco que tinha sido destelhado por um ricaço de uma casa próxima, com medo de que começasse uma favela. Realmente, havia outros barracos escondidos (“uma meia dúzia”). Dona Laura foi procurar o ricaço e lhe perguntou: “O senhor não tem medo de que esse pessoal lhe faça alguma coisa?” E ele respondeu: “Nós temos bons cachorros”.
Dona Laura do Rego Monteiro, que dirigia a Ponsa – Pequena Obra Nossa Senhora Auxiliadora, traz novas informações. Conta que um dia chegou lá Joana para tratar a filha, que era tuberculosa. A filha morava no interior, mas lá não havia tratamento. O ambulatório costumava cadastrar as pessoas a quem dava assistência, mas a Joana não queria dizer onde morava. Acabou reconhecendo que era no morro. O morro, naquele tempo, era mata fechada, como ainda é no pedaço atrás do colégio Santo Inácio. A irmã de Dona Laura e uma amiga foram ver onde morava a Joana. Voltaram contando que ela morava num barraco que tinha sido destelhado por um ricaço de uma casa próxima, com medo de que começasse uma favela. Realmente, havia outros barracos escondidos (“uma meia dúzia”). Dona Laura foi procurar o ricaço e lhe perguntou: “O senhor não tem medo de que esse pessoal lhe faça alguma coisa?” E ele respondeu: “Nós temos bons cachorros”.


A relação entre a Favela e a Igreja Católica se ampliou ao chegaram os padres Veloso e Hélio, e outras ajudas como Dom Hélder Câmara, fundador da Cruzada São Sebastião, no Leblon, e Dona Laura do Rego Monteiro, com a Ponsa. Ambas as instituições já desenvolviam projetos sociais. A Cruzada São Sebastião realizou vários trabalhos sociais no Rio, a parte mais visível cou com a implantação do conjunto habitacional Cruzada São Sebastião, no Leblon. D. Hélder bancou a permanência dos pobres no coração da zona sul. A Ponsa já existia como entidade social, iniciativa das alunas do Sacré-Coeur de Marie – escola da elite feminina do Rio de Janeiro em Copacabana.
A relação entre a Favela e a Igreja Católica se ampliou ao chegaram os padres Veloso e Hélio, e outras ajudas como Dom Hélder Câmara, fundador da [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Cruzada_São_Sebastião Cruzada São Sebastião], no Leblon, e Dona Laura do Rego Monteiro, com a Ponsa. Ambas as instituições já desenvolviam projetos sociais. A Cruzada São Sebastião realizou vários trabalhos sociais no Rio, a parte mais visível cou com a implantação do conjunto habitacional Cruzada São Sebastião, no Leblon. D. Hélder bancou a permanência dos pobres no coração da zona sul. A Ponsa já existia como entidade social, iniciativa das alunas do Sacré-Coeur de Marie – escola da elite feminina do Rio de Janeiro em Copacabana.


Há que se reconhecer que a Ponsa foi a primeira instituição a atuar no Santa Marta. Contribuiu diretamente, articulada com a Igreja Católica, para tra- zer água e luz para a favela. A construção da caixa d’água, no pico do Morro, inaugurada em 1959, foi resultado dessa ação conjunta.
Há que se reconhecer que a Ponsa foi a primeira instituição a atuar no Santa Marta. Contribuiu diretamente, articulada com a Igreja Católica, para trazer água e luz para a favela. A construção da caixa d’água, no pico do Morro, inaugurada em 1959, foi resultado dessa ação conjunta.


Na década de 70, a Ponsa teve uma ação inovadora, trabalhando com os meninos que “faziam feira”: vá- rios meninos do Santa Marta iam para as feiras livres trabalhar como carregadores de bolsas de compras. Aqueles que tinham seu carrinho de rolimã faturavam mais (era a elite dos trabalhadores de feira). Os carros eram grandes e pesados. Então a Ponsa criou uma garagem para os carrinhos de feira no prédio da instituição, construído em frente à favela, e ali desenvolveu um trabalho social com esses garotos que, dessa forma, garantiam vaga para estacionar os seus carros de feira.
Na década de 70, a Ponsa teve uma ação inovadora, trabalhando com os meninos que “faziam feira”: vários meninos do Santa Marta iam para as feiras livres trabalhar como carregadores de bolsas de compras. Aqueles que tinham seu carrinho de rolimã faturavam mais (era a elite dos trabalhadores de feira). Os carros eram grandes e pesados. Então a Ponsa criou uma garagem para os carrinhos de feira no prédio da instituição, construído em frente à favela, e ali desenvolveu um trabalho social com esses garotos que, dessa forma, garantiam vaga para estacionar os seus carros de feira.


No início dos anos 60, o Santa Marta ainda era um Morro com muitos espaços vazios, muitas árvores e lugares escuros. Quando criança, dificilmente se circulava à noite pela favela. Isso só iria acontecer na adolescência porque era bom para namorar.
No início dos anos 60, o Santa Marta ainda era um Morro com muitos espaços vazios, muitas árvores e lugares escuros. Quando criança, dificilmente se circulava à noite pela favela. Isso só iria acontecer na adolescência porque era bom para namorar.
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Às vezes eu me deslocava para brincar no terreirinho, um pouco acima da minha casa. Minha tia morava naquela área e eu tinha amigos por ali. Era interessante porque as pessoas criavam galinhas e alguns tinham porcos. Era diferente. Havia a família do Genaro e da Ercília, do Antônio e da Dadá, dos Oliveiras que inspiraram o nome da Rua das Oliveiras, a Binga e o Adonias – casal que perdeu o filho de 11 anos no desabamento de 66. Dona Alzira e tantos outros que me ocorrem davam àquele pedaço do morro uma característica especial. Depois do desabamento em 1966, que destruiu várias casas, além de matar três pessoas, perdi o prazer de brincar naquele lado do Morro. Muita coisa mudou e muitos se mudaram. A Binga, prima do meu pai, depois de perder o filho de 11 anos e o barraco, naquele desabamento, foi morar na Cidade de Deus. O conjunto habitacional, recém-construído, era muito longe, e para lá foram moradores de várias favelas do Rio que haviam sofrido com as enchentes daquele ano.
Às vezes eu me deslocava para brincar no terreirinho, um pouco acima da minha casa. Minha tia morava naquela área e eu tinha amigos por ali. Era interessante porque as pessoas criavam galinhas e alguns tinham porcos. Era diferente. Havia a família do Genaro e da Ercília, do Antônio e da Dadá, dos Oliveiras que inspiraram o nome da Rua das Oliveiras, a Binga e o Adonias – casal que perdeu o filho de 11 anos no desabamento de 66. Dona Alzira e tantos outros que me ocorrem davam àquele pedaço do morro uma característica especial. Depois do desabamento em 1966, que destruiu várias casas, além de matar três pessoas, perdi o prazer de brincar naquele lado do Morro. Muita coisa mudou e muitos se mudaram. A Binga, prima do meu pai, depois de perder o filho de 11 anos e o barraco, naquele desabamento, foi morar na Cidade de Deus. O conjunto habitacional, recém-construído, era muito longe, e para lá foram moradores de várias favelas do Rio que haviam sofrido com as enchentes daquele ano.


Em meados dos anos 60 são perceptíveis as mudanças. Algumas casas que tinham quintal e às vezes cercados, com madeira ou com plantas, desaparecem e as casas crescem até o limite da cerca. Algumas começaram a ficar “grandes”, outras com até dois anda- res. Cresce a demanda por espaço.
Em meados dos anos 60 são perceptíveis as mudanças. Algumas casas que tinham quintal e às vezes cercados, com madeira ou com plantas, desaparecem e as casas crescem até o limite da cerca. Algumas começaram a ficar “grandes”, outras com até dois andares. Cresce a demanda por espaço.
 
Minha família morou de favor com parentes, ou de aluguel durante os primeiros anos. Somente em 59 meu pai tomou a iniciativa de construir o seu próprio barraco. Corria um “ti ti ti” de que não se podia construir na favela. Existiam uns homens que autorizavam ou não essa empreitada. Mas alguns moradores discordavam dessa atitude e desobedeciam cada vez mais. Meu pai teve o apoio de alguns amigos e demarcou um espaço dentro do morro para construir a sua casa. A decisão era enfrentar a proibição. De um dia para o outro, com ajuda de muitos amigos, ergueu a estrutura do barraco, em cima do lugar que futuramente caria conhecido como quatro bicas. O depoimento do Ferreira nos aproxima da realidade daqueles tempos:


Minha família morou de favor com parentes, ou de aluguel durante os primeiros anos. Somente em 59 meu pai tomou a iniciativa de construir o seu próprio barraco. Corria um “ti ti ti” de que não se podia construir na favela. Existiam uns homens que autorizavam ou não essa empreitada. Mas alguns moradores discordavam dessa atitude e desobedeciam cada vez mais. Meu pai teve o apoio de alguns amigos e demarcou um espaço dentro do morro para construir a sua casa. A decisão era enfrentar a proibição. De um dia para o outro, com ajuda de muitos amigos, ergueu a estrutura do barraco, em cima do lugar que futuramente ficaria conhecido como quatro bicas. O depoimento do Ferreira nos aproxima da realidade daqueles tempos:
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Sr. Ferreira: “A Leão XIII tinha um regulamento que proibia fazer construção de tijolo na favela. Tinha um regulamento que, pra fazer um barraco, tinha que ter uma autorização de lá e não podia aumentar barraco na favela. Tudo era autorização da Leão XIII. Agora, isso era um negócio, tipo uma lei que tinha lá pra proibir. A finalidade da Leão XIII era mais evitar o crescimento das favelas, mas mesmo assim não houve condição de resolver isso não. Depois, a Leão XIII quis complicar os presidentes das associações de favela com essas ideias: os favelados não podiam fazer barracos, não faz isso, não faz aquilo. Mas um presidente de favela vê um irmão sofrendo, não vai impedir de aumentar o barraco. Nada disso rapaz! Inclusive fui advertido umas três vezes, porque moradores tavam com barraco aqui. Isso é meu quintal. Outro chegava, plantava um barraco e vinha se queixar comigo...
Sr. Ferreira: “A Leão XIII tinha um regulamento que proibia fazer construção de tijolo na favela. Tinha um regulamento que, pra fazer um barraco, tinha que ter uma autorização de lá e não podia aumentar barraco na favela. Tudo era autorização da Leão XIII. Agora, isso era um negócio, tipo uma lei que tinha lá pra proibir. A finalidade da Leão XIII era mais evitar o crescimento das favelas, mas mesmo assim não houve condição de resolver isso não. Depois, a Leão XIII quis complicar os presidentes das associações de favela com essas ideias: os favelados não podiam fazer barracos, não faz isso, não faz aquilo. Mas um presidente de favela vê um irmão sofrendo, não vai impedir de aumentar o barraco. Nada disso rapaz! Inclusive fui advertido umas três vezes, porque moradores tavam com barraco aqui. Isso é meu quintal. Outro chegava, plantava um barraco e vinha se queixar comigo...


Ah, não pode, pode... Daqui a pouco eu era chamado lá embaixo... eu dormi, não tava o barraco lá. Quando eu acordava de manhã, tava o barraco lá, com uma família dentro. Como é que eu vou fazer? Vou arrancar essa família de dentro do barraco? Não vou. Então o senhor vai lá e arranca, porque eu não vou tirar, não. Mandavam um cara... O negócio é você ter onde morar, porque na rua ninguém pode ficar...”
Ah, não pode, pode... Daqui a pouco eu era chamado lá embaixo... eu dormi, não tava o barraco lá. Quando eu acordava de manhã, tava o barraco lá, com uma família dentro. Como é que eu vou fazer? Vou arrancar essa família de dentro do barraco? Não vou. Então o senhor vai lá e arranca, porque eu não vou tirar, não. Mandavam um cara... O negócio é você ter onde morar, porque na rua ninguém pode ficar...”
 
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O bairro de Botafogo também estava se transformando. Muitas obras, prédios sendo erguidos e casas antigas sendo demolidas. Era relativamente fácil comprar um lote de madeira nas demolições ou nos prédios em construção. Eles precisavam se livrar daquele material já usado e os moradores precisavam de madeira para construir seus barracos. Compravam-se pranchões, caibros, perna de três, tábuas, ripas e por vezes ainda se traziam alguns gastalhos (pedaços de madeira), o que ajudava bastante na construção. Era impressionante o quanto os trabalhadores conheciam do ofício de estruturar uma casa de madeira, era rápido e seguro. Levavam às vezes horas discutindo sobre a qualidade da madeira. Parecia até discussão sobre futebol: todo mundo entendia um pouco.
O bairro de Botafogo também estava se transformando. Muitas obras, prédios sendo erguidos e casas antigas sendo demolidas. Era relativamente fácil comprar um lote de madeira nas demolições ou nos prédios em construção. Eles precisavam se livrar daquele material já usado e os moradores precisavam de madeira para construir seus barracos. Compravam-se pranchões, caibros, perna de três, tábuas, ripas e por vezes ainda se traziam alguns gastalhos (pedaços de madeira), o que ajudava bastante na construção. Era impressionante o quanto os trabalhadores conheciam do ofício de estruturar uma casa de madeira, era rápido e seguro. Levavam às vezes horas discutindo sobre a qualidade da madeira. Parecia até discussão sobre futebol: todo mundo entendia um pouco.


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Os anos 70 encontram um Santa Marta já bastante adensado. Muitos barracos de madeira. Muitos construídos em cima de valas, em condições difíceis. Os telhados eram uma mistura de telha de zinco e telha francesa, e muitas casas sofrem com goteiras. As famílias, nesse período, são bem maiores que as que temos atualmente: era comum casal com 4, 6 e até 8 filhos. Fica mais evidente um processo de diferenciação interna. Aqueles que podiam um pouco mais tinham água encanada em suas casas, pois pagavam uma taxa extra à Associação de Moradores. Havia casas de madeira muito bem acabadas, onde não havia gretas ou frestas nas paredes. Algumas casas já tinham seus banheiros. Mas o desafio de ter luz de qualidade e água em quantidade para todos foi a marca desse período. O depoimento abaixo ajuda-nos a entender o cotidiano do morador antes da entrada da Light:
Os anos 70 encontram um Santa Marta já bastante adensado. Muitos barracos de madeira. Muitos construídos em cima de valas, em condições difíceis. Os telhados eram uma mistura de telha de zinco e telha francesa, e muitas casas sofrem com goteiras. As famílias, nesse período, são bem maiores que as que temos atualmente: era comum casal com 4, 6 e até 8 filhos. Fica mais evidente um processo de diferenciação interna. Aqueles que podiam um pouco mais tinham água encanada em suas casas, pois pagavam uma taxa extra à Associação de Moradores. Havia casas de madeira muito bem acabadas, onde não havia gretas ou frestas nas paredes. Algumas casas já tinham seus banheiros. Mas o desafio de ter luz de qualidade e água em quantidade para todos foi a marca desse período. O depoimento abaixo ajuda-nos a entender o cotidiano do morador antes da entrada da Light:
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Antônio Mengão: “Quando eu subi a favela, já tinha bico de luz em alguns barracos. Não era todo mundo que tinha, não. Mas era uma luz tão fraquinha. Porque o pedido de luz pra favela foi como se fosse pra um prédio. Era assim. Tantas pessoas. Tinha uma cabine de luz. Quem comandava a luz, era na época, o representante da favela. No meu tempo, posso falar o nome: era o Seu Próculo. Ele é que era o homem responsável pela luz. Mas, para se adquirir uma lâmpada pra botá num barraquinho tinha que pedir licença a ele. Fazer um pedido, esperar. Eu fui um deles. Eu não posso falar por ninguém, eu falo por mim. Eu consegui um biquinho. Quando nasceu o meu primeiro filho, por sinal minha filha, aquela luz de querosene, aquela fumaça, a lamparina. Amanhecia o dia, ela tava com o narizinho cheio daquela fuligem do querosene. Eu fui, cheguei lá, falei com o seu Próculo. “Seu Próculo, dá pro senhor me arrumar um biquinho de luz pro meu barraquinho: eu pago, tudo bem. Só que eu quero luz lá por causa da minha filha. “Ah, eu vou ver”. Claro que ele mandou, aí eu comecei a pagar. Só que a luz.. A única coisa que você podia ligar fora da lâmpada era o rádio... porque se botasse uma geladeira... Aliás, naquele tempo ninguém tinha geladeira. Mas se ligasse, ela não funcionava, era fraca. Os tempos foram passando, os barracos foram aumentando, e os exploradores da luz... luz era comércio. Um comércio valoroso. Exploravam e cada vez era ficando mais fraca. Chegando ao ponto que você tinha uma Lâmpada que parecia um tomate maduro. Ela não iluminava nada. “Cabine espocava todas as noites: pô, pô, pô”
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Também nesse período era comum, em dias de chuva, encontrar grupos de moradores limpando trechos de vala. Era necessário desobstruir o caminho das águas, do contrário, os barracos desciam junto. A necessidade forçou a realização de muitos mutirões. Hoje, se você convida um jovem ou mesmo um adulto do Santa Marta para limpar uma vala, é bem provável que a resposta seja: “eu não sou gari pra limpar vala”. Mas nem sempre foi assim. Limpar vala era uma necessidade daqueles que moravam em cima de uma ou tinha seus barracos nas margens da rota do lixo. Quando chovia, principalmente temporal forte, era hora de “cair dentro”, enxada, ancinho, garfo, pedaço de pau ou qualquer coisa que ajudasse a empurrar o lixo vala abaixo. Os objetivos eram claros: abrir caminho para a água que vinha com muita velocidade e aproveitar essa força para fazer o lixo chegar até a rua, onde a Comlurb o recolhia. Mas a motivação principal era evitar que a água levasse os barracos juntamente com o lixo. Em dia após uma chuva forte a cena era a mesma: a escadaria entulhada de paus, ferro, restos de madeira, colchões de mola muito velhos, muita lata e uma quantidade grande de lama. Esse lixo chegava até a Rua São Clemente onde os trabalhadores da DLU (Departamento de Limpeza Urbana) passavam dois a três dias limpando.


Antônio Mengão: “Quando eu subi a favela, já tinha bico de luz em alguns barracos. Não era todo mundo que tinha, não. Mas era uma luz tão fraquinha. Porque o pedido de luz pra favela foi como se fosse pra um prédio. Era assim. Tantas pessoas. Tinha uma cabine de luz. Quem comandava a luz, era na época, o representante da favela. No meu tempo, posso falar o nome: era o Seu Próculo. Ele é que era o homem responsável pela luz. Mas, para se adquirir uma lâmpada pra botá num barraquinho tinha que pedir licença a ele. Fazer um pedido, esperar. Eu fui um deles. Eu não posso falar por ninguém, eu falo por mim. Eu consegui um biquinho. Quando nasceu o meu primeiro filho, por sinal minha filha, aquela luz de querosene, aquela fumaça, a lamparina. Amanhecia o dia, ela tava com o narizinho cheio daquela fuligem do querosene. Eu fui, cheguei lá, falei com o seu Próculo. “Seu Próculo, dá pro senhor me arrumar um biquinho de luz pro meu barraquinho: eu pago, tudo bem. Só que eu quero luz lá por causa da minha filha. “Ah, eu vou ver”. Claro que ele mandou, aí eu comecei a pagar. Só que a luz.. A única coisa que você podia ligar fora da lâmpada era o rádio... porque se botasse uma geladeira... Aliás, naquele tempo ninguém tinha geladeira. Mas se ligasse, ela não funcionava, era fraca. Os tempos foram passando, os barracos foram aumentando, e os exploradores da luz.. luz era comércio. Um comércio valoroso. Exploravam e cada vez era ficando mais fraca. Chegando ao ponto que você tinha uma Lâmpada que parecia um tomate maduro. Ela não iluminava nada. “Cabine espocava todas as noites: pô, pô, pô”
== Verbetes semelhantes ==


Também nesse período era comum, em dias de chuva, encontrar grupos de moradores limpando trechos de vala. Era necessário desobstruir o caminho das águas, do contrário, os barracos desciam junto. A necessidade forçou a realização de muitos mutirões. Hoje, se você convida um jovem ou mesmo um adulto do Santa Marta para limpar uma vala, é bem provável que a resposta seja: “eu não sou gari pra limpar vala”. Mas nem sempre foi assim. Limpar vala era uma necessidade daqueles que moravam em cima de uma ou tinha seus barracos nas margens da rota do lixo. Quando chovia, principalmente temporal forte, era hora de “cair dentro”, enxada, ancinho, garfo, pedaço de pau ou qualquer coisa que ajudasse a empurrar o lixo vala abaixo. Os objetivos eram claros: abrir caminho para a água que vinha com muita velocidade e aproveitar essa força para fazer o lixo chegar até a rua, onde a Comlurb o recolhia. Mas a motivação principal era evitar que a água levasse os barracos juntamente com o lixo. Em dia após uma chuva forte a cena era a mesma: a escadaria entulha- da de paus, ferro, restos de madeira, colchões de mola muito velhos, muita lata e uma quantidade grande de lama. Esse lixo chegava até a Rua São Clemente onde os trabalhadores da DLU (Departamento de Limpeza Urbana) passavam dois a três dias limpando.
*[https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Cruzada_São_Sebastião Cruzada São Sebastião]
*[https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Cidade_de_Deus_(favela) Cidade de Deus (favela)];


= O samba =
= O samba =