Mutirão: mudanças entre as edições

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<p>Carneiro (1957) explica que mutirão é uma palavra aportuguesada que deriva etimologicamente da família linguística Tupi-Guarani motyrõ, que significa “reunião para a colheita ou construção”, ou simplesmente “trabalho em comum”. Ainda que a origem do vocábulo seja de origem indígena, refletindo uma antiga tradição (em alguns casos, ainda vigente) de trabalho coletivo solidário entre os povos originários da América, Caldeira (1956) observa a universalidade da prática do mutirão autogestionado, considerada como uma forma de apoio mútuo, observável nas mais diferentes comunidades ao longo da História, podendo ser compreendido como um traço ontológico ou característica intrinsecamente humana que qualifica o sentido e sentimento de solidariedade de todos os povos. Na definição de mutirão da Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1998, p.4136), trata-se de um "Sistema cooperativo alternativo em que os próprios participantes são os trabalhadores e os beneficiários do produto final, que pode ser adotado em colheitas, plantios, construções de açudes e outras obras rurais, bem como, no meio urbano, em construção de moradias populares, em coleta de lixo e outras atividades".</p>
<p>Carneiro (1957) explica que mutirão é uma palavra aportuguesada que deriva etimologicamente da família linguística Tupi-Guarani motyrõ, que significa “reunião para a colheita ou construção”, ou simplesmente “trabalho em comum”. Ainda que a origem do vocábulo seja de origem indígena, refletindo uma antiga tradição (em alguns casos, ainda vigente) de trabalho coletivo solidário entre os povos originários da América, Caldeira (1956) observa a universalidade da prática do mutirão autogestionado, considerada como uma forma de apoio mútuo, observável nas mais diferentes comunidades ao longo da História, podendo ser compreendido como um traço ontológico ou característica intrinsecamente humana que qualifica o sentido e sentimento de solidariedade de todos os povos. Na definição de mutirão da Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1998, p.4136), trata-se de um "Sistema cooperativo alternativo em que os próprios participantes são os trabalhadores e os beneficiários do produto final, que pode ser adotado em colheitas, plantios, construções de açudes e outras obras rurais, bem como, no meio urbano, em construção de moradias populares, em coleta de lixo e outras atividades".</p>
<p>Ainda de acordo com a mesma fonte, há uma especificidade brasileira do termo e de suas práticas históricas:</p>
<p>Ainda de acordo com a mesma fonte, há uma especificidade brasileira do termo e de suas práticas históricas:</p>
<p>No Brasil, a origem do mutirão representa uma forma de ajuda mútua em que os trabalhadores rurais participavam de certa obra necessária a um dos membros da comunidade que, sozinho, não teria recursos e possibilidade de levar a cabo o empreendimento. Assim, todos reunidos, partilham da construção das obras necessárias a cada membro segundo certas regras definidas pela própria comunidade (p.4137).</p>
<p>No Brasil, a origem do mutirão representa uma forma de ajuda mútua em que os trabalhadores rurais participavam de certa obra necessária a um dos membros da comunidade que, sozinho, não teria recursos e possibilidade de levar a cabo o empreendimento. Assim, todos reunidos, partilham da construção das obras necessárias a cada membro segundo certas regras definidas pela própria comunidade (p.4137).</p>


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<p>De fato, observa-se, ao longo da história do Brasil, que a prática foi e continua sendo uma forma alternativa das camadas mais pobres da sociedade de produzir, de modo autônomo, suas próprias habitações populares. Pode-se dizer, portanto, que o mutirão autogestionado é uma solução do povo para suprir sua demanda ou necessidade imediata básica: a moradia – a qual, apesar de se constituir como um direito constitucionalmente garantido, não é assegurada de fato pelo Estado para a grande maioria dos brasileiros.</p>
<p>De fato, observa-se, ao longo da história do Brasil, que a prática foi e continua sendo uma forma alternativa das camadas mais pobres da sociedade de produzir, de modo autônomo, suas próprias habitações populares. Pode-se dizer, portanto, que o mutirão autogestionado é uma solução do povo para suprir sua demanda ou necessidade imediata básica: a moradia – a qual, apesar de se constituir como um direito constitucionalmente garantido, não é assegurada de fato pelo Estado para a grande maioria dos brasileiros.</p>
<p>O mutirão autogestionado representa uma forma popular solidária e comunitária de trabalho baseado no apoio mútuo, organizado em sistema de rotação e sem hierarquias pré-estabelecidas. De modo que, além de sua dimensão instrumental (como meio para lograr um fim – no caso, o direito cidadão a uma habitação digna), a prática deve ser compreendida também em sua dimensão formativa/educativa e inclusive afetiva.&nbsp;</p>
<p>O mutirão autogestionado representa uma forma popular solidária e comunitária de trabalho baseado no apoio mútuo, organizado em sistema de rotação e sem hierarquias pré-estabelecidas. De modo que, além de sua dimensão instrumental (como meio para lograr um fim – no caso, o direito cidadão a uma habitação digna), a prática deve ser compreendida também em sua dimensão formativa/educativa e inclusive afetiva.&nbsp;</p>
<p>'''Mutirão autogestionado e luta pela moradia no Brasil'''</p>
<p>'''Mutirão autogestionado e luta pela moradia no Brasil'''</p>
<p>A crise de moradia no Brasil não é recente – trata-se de um problema social estrutural que encontra suas origens nas transformações observadas no meio rural brasileiro, essencialmente em meados do século XIX no processo de desenvolvimento da urbanização.</p>
<p>A crise de moradia no Brasil não é recente – trata-se de um problema social estrutural que encontra suas origens nas transformações observadas no meio rural brasileiro, essencialmente em meados do século XIX no processo de desenvolvimento da urbanização.</p>
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<p>Quando analisamos a atual crise de moradia no município do Rio de Janeiro, a dinâmica galopante da expropriação de direitos básicos fica evidente. O cenário de déficit habitacional da cidade chegou a níveis alarmantes: cerca de 22% dos cariocas vivem em favelas que, em sua imensa maioria, distam muito do centro da cidade, de seus locais de trabalho – quando o têm, pois o desemprego atingiu, em 2019, um nível recorde, afetando 15% da população do Rio.&nbsp;</p>
<p>Quando analisamos a atual crise de moradia no município do Rio de Janeiro, a dinâmica galopante da expropriação de direitos básicos fica evidente. O cenário de déficit habitacional da cidade chegou a níveis alarmantes: cerca de 22% dos cariocas vivem em favelas que, em sua imensa maioria, distam muito do centro da cidade, de seus locais de trabalho – quando o têm, pois o desemprego atingiu, em 2019, um nível recorde, afetando 15% da população do Rio.&nbsp;</p>
<p>Como consequência desses e diversos outros fatores nos últimos três anos a população em situação de rua triplicou: de 5 mil pessoas, em 2015, passou para cerca de 15 mil em 2019, agravando ainda mais o problema. Atualmente e em números reais, temos aproximadamente um milhão e trezentas mil pessoas vivendo sob condições precárias e desumanas (ou em situação de rua) apenas na cidade do Rio. É o equivalente à população total de países como Timor Leste, Trinidad e Tobago ou Estônia. São dados preocupantes e obscenos, que deveriam causar, no mínimo, constrangimento ao poder público e um profundo sentimento de indignação e revolta de toda a população.</p>
<p>Como consequência desses e diversos outros fatores nos últimos três anos a população em situação de rua triplicou: de 5 mil pessoas, em 2015, passou para cerca de 15 mil em 2019, agravando ainda mais o problema. Atualmente e em números reais, temos aproximadamente um milhão e trezentas mil pessoas vivendo sob condições precárias e desumanas (ou em situação de rua) apenas na cidade do Rio. É o equivalente à população total de países como Timor Leste, Trinidad e Tobago ou Estônia. São dados preocupantes e obscenos, que deveriam causar, no mínimo, constrangimento ao poder público e um profundo sentimento de indignação e revolta de toda a população.</p>
<p>'''Mutirão autogestionado: necessidade, utopia e processo pedagógico'''</p>
<p>'''Mutirão autogestionado: necessidade, utopia e processo pedagógico'''</p>
<p>O mutirão do tipo autogestionado é realizado exatamente para suprir a demanda ou necessidade imediata dos mais pobres: a moradia. O canteiro converte-se em um espaço educativo/[trans]formativo no qual, segundo Rodrigo Lefèvre (1981) – arquiteto brasileiro que participou organicamente de diversas experiências de construção de moradias populares por meio de mutirões autogestionados –, existe a possibilidade emancipatória, precisamente por se tratar de um projeto democrático participativo. Lefèvre (1981) assinala que este constitui uma prática essencialmente educativa a qual se assemelha, em muito, ao método pedagógico freireano. O arquiteto aponta que o canteiro de obras de um mutirão baseado na autogestão e todo o processo de conquista do território até a obra finalizada, são momentos de grande aprendizagem para os participantes mutirantes. Para o autor, assim como na pedagogia de Paulo Freire (1978; 1985; 1992; 1996) – em que a alfabetização constitui um meio para a elevação cultural das massas – a construção de habitações por meio do mutirão autogestionado não é apenas um fim em si mesmo, mas um ponto de partida para um processo pedagógico de emancipação humana.</p>
<p>O mutirão do tipo autogestionado é realizado exatamente para suprir a demanda ou necessidade imediata dos mais pobres: a moradia. O canteiro converte-se em um espaço educativo/[trans]formativo no qual, segundo Rodrigo Lefèvre (1981) – arquiteto brasileiro que participou organicamente de diversas experiências de construção de moradias populares por meio de mutirões autogestionados –, existe a possibilidade emancipatória, precisamente por se tratar de um projeto democrático participativo. Lefèvre (1981) assinala que este constitui uma prática essencialmente educativa a qual se assemelha, em muito, ao método pedagógico freireano. O arquiteto aponta que o canteiro de obras de um mutirão baseado na autogestão e todo o processo de conquista do território até a obra finalizada, são momentos de grande aprendizagem para os participantes mutirantes. Para o autor, assim como na pedagogia de Paulo Freire (1978; 1985; 1992; 1996) – em que a alfabetização constitui um meio para a elevação cultural das massas – a construção de habitações por meio do mutirão autogestionado não é apenas um fim em si mesmo, mas um ponto de partida para um processo pedagógico de emancipação humana.</p>