Pertencimento ao Complexo do Alemão: mudanças entre as edições
Sem resumo de edição |
Sem resumo de edição |
||
| Linha 1: | Linha 1: | ||
'''Autor''': [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Usuário:Thiago_Matiolli&action=edit&redlink=1 Thiago Oliveira Lima Matiolli]. | '''Autor''': [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Usuário:Thiago_Matiolli&action=edit&redlink=1 Thiago Oliveira Lima Matiolli]. | ||
É comum entre pesquisadoras(es), sobretudo aquelas(es) que se pretendem estudar as favelas, tomar como pressuposto o fato de que as pessoas que vivem em áreas que hoje são percebidas como complexo de favelas não se vêem como moradoras de um “complexo”. Essa premissa, que não vem acompanhada de evidências empíricas rigorosas, é suficiente para que tais “especialistas” passem a afirmar que essa perspectiva espacial é algo construído pelo Estado e imposto a quem habita as áreas faveladas, numa lógica militarizada. Negligenciando, assim, em alguma medida, a agência de quem vive nesses espaços. | É comum entre pesquisadoras(es), sobretudo aquelas(es) que se pretendem estudar as favelas, tomar como pressuposto o fato de que as pessoas que vivem em áreas que hoje são percebidas como complexo de favelas não se vêem como moradoras de um “complexo”. Essa premissa, que não vem acompanhada de evidências empíricas rigorosas, é suficiente para que tais “especialistas” passem a afirmar que essa perspectiva espacial é algo construído pelo Estado e imposto a quem habita as áreas faveladas, numa lógica militarizada. Negligenciando, assim, em alguma medida, a agência de quem vive nesses espaços. | ||
Todavia, a relação que é estabelecida pelas pessoas que vivem nesses espaços renomeados como “complexo de favelas” com seu lugar de moradia promove menos sua identificação (ou não) definitiva como moradoras de um “complexo”, do que a possibilidade de um pertencimento (ou não) a ele, o qual é acionado de modo bastante heterogêneo e, usualmente, estratégico. O que isso quer dizer: primeiro, que não podemos fazer afirmações generalistas e duais que afirmem ou neguem a identidade de alguém a “um complexo”; segundo, e em decorrência do primeiro, que os pertencimentos a essa nova escala espacial da cidade do Rio de Janeiro (complexo) são múltiplos, variados e imprevisíveis. | Todavia, a relação que é estabelecida pelas pessoas que vivem nesses espaços renomeados como “complexo de favelas” com seu lugar de moradia promove menos sua identificação (ou não) definitiva como moradoras de um “complexo”, do que a possibilidade de um pertencimento (ou não) a ele, o qual é acionado de modo bastante heterogêneo e, usualmente, estratégico. O que isso quer dizer: primeiro, que não podemos fazer afirmações generalistas e duais que afirmem ou neguem a identidade de alguém a “um complexo”; segundo, e em decorrência do primeiro, que os pertencimentos a essa nova escala espacial da cidade do Rio de Janeiro (complexo) são múltiplos, variados e imprevisíveis<ref> Para um visão mais detalhada desta questão, ver o verbete “https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Complexos_de_Favelas”, neste dicionário. | ||
</ref>. | |||
As pessoas vão se perceber como moradoras ou não de um complexo de maneiras diferentes. Ante a uma pergunta do tipo: “você mora no Complexo do Alemão?”, uma moradora ou morador da área pode responder que “não”. O que não implica necessariamente numa resistência em reconhecer esse novo espaço da cidade, que lhe teria sido imposto como lugar de moradia. | As pessoas vão se perceber como moradoras ou não de um complexo de maneiras diferentes. Ante a uma pergunta do tipo: “você mora no Complexo do Alemão?”, uma moradora ou morador da área pode responder que “não”. O que não implica necessariamente numa resistência em reconhecer esse novo espaço da cidade, que lhe teria sido imposto como lugar de moradia. | ||
| Linha 16: | Linha 15: | ||
Então, para se apreender como as pessoas se identificam ou pertencem ao Complexo do Alemão é preciso entender que esse pertencimento seguirá perspectivas variáveis e estratégicas. Trata-se de mais uma escala espacial que se sobrepõe ao lugar onde se vive e pode ser acionada se necessário, isto é, uma pessoa pode se ver como moradora, ao mesmo tempo, da Nova Brasília e do Complexo do Alemão, tal como, da Zona da Leopoldina, da cidade e do estado do Rio de Janeiro; e, ainda, deste país chamado Brasil. | Então, para se apreender como as pessoas se identificam ou pertencem ao Complexo do Alemão é preciso entender que esse pertencimento seguirá perspectivas variáveis e estratégicas. Trata-se de mais uma escala espacial que se sobrepõe ao lugar onde se vive e pode ser acionada se necessário, isto é, uma pessoa pode se ver como moradora, ao mesmo tempo, da Nova Brasília e do Complexo do Alemão, tal como, da Zona da Leopoldina, da cidade e do estado do Rio de Janeiro; e, ainda, deste país chamado Brasil. | ||
Neste verbete, não se vai abordar a relação de moradoras e moradores com o Complexo do Alemão ao longo do século, haja vista que essa denominação começou a ser produzida apenas na década de 1980, até que virasse bairro na década seguinte. Mas, resgatar o processo histórico de produção desse novo espaço na cidade e como ele passou a ser experimentado pelos moradores nas últimas décadas. | Neste verbete, não se vai abordar a relação de moradoras e moradores com o Complexo do Alemão ao longo do século, haja vista que essa denominação começou a ser produzida apenas na década de 1980, até que virasse bairro na década seguinte. Mas, resgatar o processo histórico de produção desse novo espaço na cidade e como ele passou a ser experimentado pelos moradores nas últimas décadas. '''O morro do alemão como um aglomerado de favelas. ''' | ||
| |||
'''O morro do alemão como um aglomerado de favelas. ''' | |||
Talvez a primeira menção pública a um possível Complexo do Alemão possa ser resgatada de uma edição do Jornal do Brasil de 13 de Janeiro de 1980, através da transcrição de uma fala do então Secretário Municipal de Desenvolvimento Social do Município do Rio de Janeiro, Marcos Candau, ao abordar o crescimento do processo de favelização da cidade. Ao listar as favelas que mais teriam crescido nos anos anteriores, ele afirmava: | Talvez a primeira menção pública a um possível Complexo do Alemão possa ser resgatada de uma edição do Jornal do Brasil de 13 de Janeiro de 1980, através da transcrição de uma fala do então Secretário Municipal de Desenvolvimento Social do Município do Rio de Janeiro, Marcos Candau, ao abordar o crescimento do processo de favelização da cidade. Ao listar as favelas que mais teriam crescido nos anos anteriores, ele afirmava: | ||
| Linha 48: | Linha 45: | ||
Por fim, é interessante destacar a recorrência, no levantamento jurídico da expressão “Complexo do Alemão”, uma vez que essa seção foi realizada por técnicos da própria SMDS. Assim, talvez seja possível sugerir que a consolidação do uso do “Complexo” para o Alemão, e não outra das noções utilizadas ao longo do Projeto pode ser fruto de sua cristalização nas rotinas burocráticas e administrativas dessa secretaria (MATIOLLI, 2016). | Por fim, é interessante destacar a recorrência, no levantamento jurídico da expressão “Complexo do Alemão”, uma vez que essa seção foi realizada por técnicos da própria SMDS. Assim, talvez seja possível sugerir que a consolidação do uso do “Complexo” para o Alemão, e não outra das noções utilizadas ao longo do Projeto pode ser fruto de sua cristalização nas rotinas burocráticas e administrativas dessa secretaria (MATIOLLI, 2016). | ||
A delimitação geográfica e da quantidade de favelas existentes no Rio de Janeiro, tal como de sua população, se colocava como um dos grandes desafios do governo municipal no início da década de 1980. Para tentar lidar com essas questões o Iplanrio assume um papel importante na produção de dados para o Município; através dele, foi produzido um Cadastro de Favelas; neste período, também foram divulgados os dados do censo de 1980, com informações referentes às favelas; e houve uma movimentação de conciliação entre os dados do IBGE e os produzidos por esse novo quadro e saber administrativo produzidos pela Prefeitura. Neste ínterim, a ideia de que há um Complexo do Alemão, ou de Complexos de favelas, se consolida ainda mais, com a diferenciação entre “favelas isoladas” e “aglomerados de favelas” (IPLANRIO, 1984). | A delimitação geográfica e da quantidade de favelas existentes no Rio de Janeiro, tal como de sua população, se colocava como um dos grandes desafios do governo municipal no início da década de 1980. Para tentar lidar com essas questões o Iplanrio assume um papel importante na produção de dados para o Município; através dele, foi produzido um Cadastro de Favelas; neste período, também foram divulgados os dados do censo de 1980, com informações referentes às favelas; e houve uma movimentação de conciliação entre os dados do IBGE e os produzidos por esse novo quadro e saber administrativo produzidos pela Prefeitura. Neste ínterim, a ideia de que há um Complexo do Alemão, ou de Complexos de favelas, se consolida ainda mais, com a diferenciação entre “favelas isoladas” e “aglomerados de favelas” (IPLANRIO, 1984). '''A XXIX Região Administrativa - Complexo do Alemão''' | ||
| |||
'''A XXIX Região Administrativa - Complexo do Alemão''' | |||
Saturnino Braga foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro eleito diretamente depois do fim a ditadura civil-militar. Uma de suas iniciativas mais marcantes foi a criação de Regiões Administrativas nas quatro maiores áreas faveladas da cidade: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. E a eleição para os administradores regionais do município. | Saturnino Braga foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro eleito diretamente depois do fim a ditadura civil-militar. Uma de suas iniciativas mais marcantes foi a criação de Regiões Administrativas nas quatro maiores áreas faveladas da cidade: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. E a eleição para os administradores regionais do município. | ||
| Linha 68: | Linha 63: | ||
Como aponta carta, o Complexo do Alemão, quando ganha sua Região Administrativa, surge composto por sete favelas (ao menos aquelas com associação de moradores), as seis que assinam a carta mais o Morro do Adeus, representado pela própria Mariza. Este, junto com a Baiana, não são contíguos às quatro favelas que compunham, inicialmente, o espaço do Complexo do Alemão, tal como definidos nos estudos e documentos oficiais analisados anteriormente; todavia, são próximos, separados do restante do Alemão, apenas pela Estrada do Itararé, o que pode ter contribuído para sua inserção na área da nova Região Administrativa, o que viria viabilizar, inclusive, a candidatura de Mariza. | Como aponta carta, o Complexo do Alemão, quando ganha sua Região Administrativa, surge composto por sete favelas (ao menos aquelas com associação de moradores), as seis que assinam a carta mais o Morro do Adeus, representado pela própria Mariza. Este, junto com a Baiana, não são contíguos às quatro favelas que compunham, inicialmente, o espaço do Complexo do Alemão, tal como definidos nos estudos e documentos oficiais analisados anteriormente; todavia, são próximos, separados do restante do Alemão, apenas pela Estrada do Itararé, o que pode ter contribuído para sua inserção na área da nova Região Administrativa, o que viria viabilizar, inclusive, a candidatura de Mariza. | ||
Esta “Carta de Apoio” surge como o primeiro registro de uma articulação de organizações sociais em torno de uma nova escala de pertencimento.. Movimentos políticos posteriores na região do bairro, da década de 1990 em diante, como a luta pela implantação do Conselho de Saúde do Complexo do Alemão (CONSA), o Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia (CDLSM) ou o mais recente o Juntos Pelo Complexo do Alemão, parecem ter tido como embrião essa carta, na qual representantes de distintas associações dialogam em prol do Complexo do Alemão. | Esta “Carta de Apoio” surge como o primeiro registro de uma articulação de organizações sociais em torno de uma nova escala de pertencimento.. Movimentos políticos posteriores na região do bairro, da década de 1990 em diante, como a luta pela implantação do Conselho de Saúde do Complexo do Alemão (CONSA), o Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia (CDLSM) ou o mais recente o Juntos Pelo Complexo do Alemão, parecem ter tido como embrião essa carta, na qual representantes de distintas associações dialogam em prol do Complexo do Alemão. '''A década de 1990''' | ||
| |||
'''A década de 1990''' | |||
Como pode ser visto no verbete “complexos” deste dicionário, um dos desdobramos da criação dessas novas Regiões Administrativas nas grandes áreas faveladas da cidade, foi a criação dos bairros homônimos: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. Mas, também, a exclusão das favelas pertencentes aos espaços considerados como Complexos das obras do Programa Favela-Bairro, por serem tomadas como grandes favelas. As quais seriam contempladas, posteriormente, como Planos de Desenvolvimento Urbanísticos específicos, por conta de suas dimensões e complexidades. O PDU que foi desenvolvido para o Complexo do alemão foi base para o desenvolvimento do projeto que será financiado, no final da década de 2000, pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). | Como pode ser visto no verbete “complexos” deste dicionário, um dos desdobramos da criação dessas novas Regiões Administrativas nas grandes áreas faveladas da cidade, foi a criação dos bairros homônimos: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. Mas, também, a exclusão das favelas pertencentes aos espaços considerados como Complexos das obras do Programa Favela-Bairro, por serem tomadas como grandes favelas. As quais seriam contempladas, posteriormente, como Planos de Desenvolvimento Urbanísticos específicos, por conta de suas dimensões e complexidades. O PDU que foi desenvolvido para o Complexo do alemão foi base para o desenvolvimento do projeto que será financiado, no final da década de 2000, pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). | ||
| Linha 104: | Linha 97: | ||
O que vai abrir, para espíritos empreendedores do bairro, possibilidades de negócios, a partir de seus pertencimentos ao Complexo do Alemão. Esse branding do Complexo do Alemão é apropriado localmente e alimenta uma série de novos empreendimentos locais que buscam associar novos serviços e produtos à brand (marca) Complexo do Alemão. Assim, vê-se surgir uma agência de turismo, a “Turismo no Alemão”; uma marca de roupas a “complexidade urbana” (desde 2009); e mesmo de uma cerveja própria, a “Complexo do Alemão”, que pode ser encontrada no Bistrô R&R. Isso, para não falar, por falta de espaço, da apropriação da brand Alemão por circuitos do terceiro setor, do empreendedorismo social e algumas celebridades. | O que vai abrir, para espíritos empreendedores do bairro, possibilidades de negócios, a partir de seus pertencimentos ao Complexo do Alemão. Esse branding do Complexo do Alemão é apropriado localmente e alimenta uma série de novos empreendimentos locais que buscam associar novos serviços e produtos à brand (marca) Complexo do Alemão. Assim, vê-se surgir uma agência de turismo, a “Turismo no Alemão”; uma marca de roupas a “complexidade urbana” (desde 2009); e mesmo de uma cerveja própria, a “Complexo do Alemão”, que pode ser encontrada no Bistrô R&R. Isso, para não falar, por falta de espaço, da apropriação da brand Alemão por circuitos do terceiro setor, do empreendedorismo social e algumas celebridades. | ||
Com esses exemplos, não se quer aqui reforçar a força do empreendedorismo local ou romantizar a vida econômica local, mas apontar que o arraigamento local da ideia do Complexo do Alemão, pode gerar apropriações múltiplas, seja como uma brand (marca), que aciona, inclusive, laços afetivos com moradoras e moradores com seus produtos; seja como um elemento aglutinador de forças em momentos de crise, como vimos na seção anterior. Os efeitos locais da noção de “complexo” de favelas, a partir da experiência de pesquisa no Complexo do Alemão, são variados; os exemplos aqui trazidos não tem a menor pretensão de esgotar essas possibilidades, mas contribuem bastante para a construção e apresentação do argumento. | Com esses exemplos, não se quer aqui reforçar a força do empreendedorismo local ou romantizar a vida econômica local, mas apontar que o arraigamento local da ideia do Complexo do Alemão, pode gerar apropriações múltiplas, seja como uma brand (marca), que aciona, inclusive, laços afetivos com moradoras e moradores com seus produtos; seja como um elemento aglutinador de forças em momentos de crise, como vimos na seção anterior. Os efeitos locais da noção de “complexo” de favelas, a partir da experiência de pesquisa no Complexo do Alemão, são variados; os exemplos aqui trazidos não tem a menor pretensão de esgotar essas possibilidades, mas contribuem bastante para a construção e apresentação do argumento. '''Pertencer ao Complexo do Alemão''' | ||
| |||
'''Pertencer ao Complexo do Alemão''' | |||
Resgatando a pergunta usada como exemplo no início do verbete: “você mora ou não no Complexo do Alemão?”, podemos encerrá-lo. A resposta vai ser simples, sim ou não. Contudo, as motivações por trás dessas respostas são múltiplas, e boa parte delas, estratégica. A existência dos complexos de favelas na cidade, não tem efeitos identitários, mas se colocam como novas escalas de pertencimento à qual, suas moradoras e seus moradores poderão acionar de acordo com suas necessidades. Podem omitir, mas também podem reafirmar esse pertencimento, seja por orgulho, ou por algum interesse econômico, como vimos. | Resgatando a pergunta usada como exemplo no início do verbete: “você mora ou não no Complexo do Alemão?”, podemos encerrá-lo. A resposta vai ser simples, sim ou não. Contudo, as motivações por trás dessas respostas são múltiplas, e boa parte delas, estratégica. A existência dos complexos de favelas na cidade, não tem efeitos identitários, mas se colocam como novas escalas de pertencimento à qual, suas moradoras e seus moradores poderão acionar de acordo com suas necessidades. Podem omitir, mas também podem reafirmar esse pertencimento, seja por orgulho, ou por algum interesse econômico, como vimos. | ||
| Linha 122: | Linha 113: | ||
| | ||
[[Category:Complexo do Alemão]][[Category:História de favela]][[Category:Memória]][[Category:Rio de Janeiro]] | [[Category:Complexo do Alemão]] [[Category:História de favela]] [[Category:Memória]] [[Category:Rio de Janeiro]] | ||
