Posse e Propriedade: mudanças entre as edições

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<span style="tab-stops:42.55pt">A posse também pode ser oficializada e existem diferentes mecanismos legais para isso, como por exemplo concessões feitas pelo poder público a famílias de baixa renda para moradia em terras públicas dentre outros instrumentos. De modo geral, para aplicação destes instrumentos de oficialização da posse é necessária a sua comprovação, a qual pode se dar de diferentes formas como apresentação de contratos, contas de luz, registro de cadastro em postos de saúde locais, testemunho de vizinhos.</span>
<span style="tab-stops:42.55pt">A posse também pode ser oficializada e existem diferentes mecanismos legais para isso, como por exemplo concessões feitas pelo poder público a famílias de baixa renda para moradia em terras públicas dentre outros instrumentos. De modo geral, para aplicação destes instrumentos de oficialização da posse é necessária a sua comprovação, a qual pode se dar de diferentes formas como apresentação de contratos, contas de luz, registro de cadastro em postos de saúde locais, testemunho de vizinhos.</span>


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= Introdução =
 
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= '''Introdução''' =


O tema posse e propriedade será abordado aqui em função da sua ligação com o direito à moradia e por ser um aspecto importante das regularizações fundiárias. O acesso à moradia depende fundamentalmente do acesso à terra e este está regulamentado pelo modelo tradicional do direito de propriedade, que apresenta uma tendência excessivamente individualista e formalista. Isto significa que a moradia somente costuma ter uma efetiva proteção jurídica quando o morador é proprietário individual do bem e tem essa propriedade registrada em seu nome no cartório de registro de imóveis.
O tema posse e propriedade será abordado aqui em função da sua ligação com o direito à moradia e por ser um aspecto importante das regularizações fundiárias. O acesso à moradia depende fundamentalmente do acesso à terra e este está regulamentado pelo modelo tradicional do direito de propriedade, que apresenta uma tendência excessivamente individualista e formalista. Isto significa que a moradia somente costuma ter uma efetiva proteção jurídica quando o morador é proprietário individual do bem e tem essa propriedade registrada em seu nome no cartório de registro de imóveis.
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Acontece que a propriedade individual e exclusiva não é o único mecanismo capaz de gerar segurança aos moradores. Assim como não é possível apresentar um conceito singular e universal de propriedade, pois longe de ter uma essência ou características fixas, a propriedade está ligada ao contexto histórico onde é analisada e é efeito de arranjos jurídicos determinados por escolhas políticas que se alteram com o tempo. No entanto, é possível afirmar que, na história brasileira, ter propriedade significou e ainda significa ter um título formal que oficialize a aquisição desse direito pelos indivíduos; não havendo esse título, tratar-se-ia de posse ou detenção.
Acontece que a propriedade individual e exclusiva não é o único mecanismo capaz de gerar segurança aos moradores. Assim como não é possível apresentar um conceito singular e universal de propriedade, pois longe de ter uma essência ou características fixas, a propriedade está ligada ao contexto histórico onde é analisada e é efeito de arranjos jurídicos determinados por escolhas políticas que se alteram com o tempo. No entanto, é possível afirmar que, na história brasileira, ter propriedade significou e ainda significa ter um título formal que oficialize a aquisição desse direito pelos indivíduos; não havendo esse título, tratar-se-ia de posse ou detenção.


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= A propriedade e a posse na história brasileira =
 
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= '''A propriedade e a posse na história brasileira''' =


o período colonial, prevaleceu no Brasil o acesso à propriedade da terra por meio da posse, ou seja, era conferida a propriedade àqueles que já utilizassem e dessem produtividade à terra, desde que fossem cumpridas ainda algumas obrigações junto à Coroa Portuguesa. Até 1822, a estrutura fundiária do Brasil seguia o modelo do regime medieval português das sesmarias, sobre as quais se dava uma dupla propriedade entre Coroa e sesmeiro. Até então não havia, portanto, a propriedade plena da terra, visto que o sesmeiro a recebia por meio da carta de sesmaria e era condicionado por uma série de obrigações como posse da terra, cultivo, propriedade de escravo, medição, demarcação, confirmação, etc. No entanto, na prática, a regra que prevalecia era do descumprimento dos preceitos legais (GARCIA, 2011). A incoerência entre as condições legais e a realidade dos domínios, a ampla realidade de posses independentes de outorga de cartas de sesmarias, as imprecisões dos dados e informações sobre elas foram a regra desse período e oportunas à multiplicação de conflitos fundiários (MOTTA e SECRETO, 2011).
o período colonial, prevaleceu no Brasil o acesso à propriedade da terra por meio da posse, ou seja, era conferida a propriedade àqueles que já utilizassem e dessem produtividade à terra, desde que fossem cumpridas ainda algumas obrigações junto à Coroa Portuguesa. Até 1822, a estrutura fundiária do Brasil seguia o modelo do regime medieval português das sesmarias, sobre as quais se dava uma dupla propriedade entre Coroa e sesmeiro. Até então não havia, portanto, a propriedade plena da terra, visto que o sesmeiro a recebia por meio da carta de sesmaria e era condicionado por uma série de obrigações como posse da terra, cultivo, propriedade de escravo, medição, demarcação, confirmação, etc. No entanto, na prática, a regra que prevalecia era do descumprimento dos preceitos legais (GARCIA, 2011). A incoerência entre as condições legais e a realidade dos domínios, a ampla realidade de posses independentes de outorga de cartas de sesmarias, as imprecisões dos dados e informações sobre elas foram a regra desse período e oportunas à multiplicação de conflitos fundiários (MOTTA e SECRETO, 2011).
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A posse, a partir o Código Civil de 1916, foi conceituada como uma manifestação de fato do direito de propriedade. Enquanto a propriedade se manifesta no mundo jurídico através de mecanismos contratuais de aquisição e do registro imobiliário, ela se manifestaria no mundo real através da posse. O possuidor, deste modo, ou é o proprietário do bem dando efetiva utilidade a este ou o possuidor é alguém que está exercendo a posse a partir de autorização deste proprietário. Esta legislação também estabeleceu mecanismos de proteção de posse - como a ação de reintegração– que serviam, na prática, para os proprietários protegerem seus domínios, sem que para isso precisassem estar de fato exercendo a posse sobre seus imóveis, ou seja, sem mesmo terem que provar o cumprimento da função social.
A posse, a partir o Código Civil de 1916, foi conceituada como uma manifestação de fato do direito de propriedade. Enquanto a propriedade se manifesta no mundo jurídico através de mecanismos contratuais de aquisição e do registro imobiliário, ela se manifestaria no mundo real através da posse. O possuidor, deste modo, ou é o proprietário do bem dando efetiva utilidade a este ou o possuidor é alguém que está exercendo a posse a partir de autorização deste proprietário. Esta legislação também estabeleceu mecanismos de proteção de posse - como a ação de reintegração– que serviam, na prática, para os proprietários protegerem seus domínios, sem que para isso precisassem estar de fato exercendo a posse sobre seus imóveis, ou seja, sem mesmo terem que provar o cumprimento da função social.


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= Função social da propriedade e a importância da posse na garantia de direitos =
 
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= '''Função social da propriedade e a importância da posse na garantia de direitos''' =


As mudanças constitucionais do último século e sua repercussão no sistema jurídico fizeram com que se estabelecessem novos contextos para a caracterização do direito de propriedade. O fortalecimento dos direitos fundamentais e o reconhecimento dos direitos sociais atribui ao Estado a obrigação de prover necessidades sociais e intervir de forma mais efetiva em prol dos interesses coletivos. Esse contexto tem efeito importante sobre o direito de propriedade, pois o seu exercício e proteção jurídica passam a incorporar uma condição de legitimidade: o cumprimento da função social.
As mudanças constitucionais do último século e sua repercussão no sistema jurídico fizeram com que se estabelecessem novos contextos para a caracterização do direito de propriedade. O fortalecimento dos direitos fundamentais e o reconhecimento dos direitos sociais atribui ao Estado a obrigação de prover necessidades sociais e intervir de forma mais efetiva em prol dos interesses coletivos. Esse contexto tem efeito importante sobre o direito de propriedade, pois o seu exercício e proteção jurídica passam a incorporar uma condição de legitimidade: o cumprimento da função social.
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Nesta lógica colocada pela funcionalização da propriedade, a posse assume um papel importante e passa a ter um espaço autônomo em relação à propriedade, sobretudo por seu papel de destaque na garantia da dignidade da pessoa humana. Ampliam-se, assim, as possibilidades concretas de reconhecimento de posse (ex: posse trabalho, posse moradia, posse familiar, posse coletiva) e os meios legais de proteção da posse não mais são dirigidos a proteger necessariamente o domínio do proprietário, podendo, inclusive, serem utilizados contra ele. A posse tem tratamento autônomo e qualificado na lei em situações como a redução do tempo necessário de algumas modalidades de usucapião quando o bem for utilizado para trabalho ou moradia (art. 1238 e 1242) – manifestando o que os autores chamam de função social da posse – ou com a mudança do entendimento judicial predominante que não mais autoriza o uso de procedimentos jurídicos de proteção possessória por proprietários que não exercem, de fato, a posse sobre os imóveis de sua titularidade.
Nesta lógica colocada pela funcionalização da propriedade, a posse assume um papel importante e passa a ter um espaço autônomo em relação à propriedade, sobretudo por seu papel de destaque na garantia da dignidade da pessoa humana. Ampliam-se, assim, as possibilidades concretas de reconhecimento de posse (ex: posse trabalho, posse moradia, posse familiar, posse coletiva) e os meios legais de proteção da posse não mais são dirigidos a proteger necessariamente o domínio do proprietário, podendo, inclusive, serem utilizados contra ele. A posse tem tratamento autônomo e qualificado na lei em situações como a redução do tempo necessário de algumas modalidades de usucapião quando o bem for utilizado para trabalho ou moradia (art. 1238 e 1242) – manifestando o que os autores chamam de função social da posse – ou com a mudança do entendimento judicial predominante que não mais autoriza o uso de procedimentos jurídicos de proteção possessória por proprietários que não exercem, de fato, a posse sobre os imóveis de sua titularidade.


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= Instrumentos de regularização de posse e de propriedade =
 
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= '''Instrumentos de regularização de posse e de propriedade''' =


Nos programas de regularização fundiária, a segurança da posse dos moradores de favela depende de formalização dos direitos sobre os bens e do registro destes no cartório de registro de imóveis. A legislação prevê diferentes mecanismos para essa regularização, podendo: assegurar o direito de posse ou de propriedade; titular direitos - individualmente por morador ou abrangendo várias moradias de uma área; gerar uma propriedade exclusiva ou compartilhada; e, ainda, gerar provisoriamente uma posse que posteriormente é convertida em propriedade. Enfim, atualmente a legislação disponibiliza uma ampla lista de instrumentos, os quais podem ser escolhidos de acordo com as características dos imóveis, da área na qual eles estão inseridos, dos fins para os quais são empregados, das escolhas feitas pelos entes responsáveis pela regularização fundiária, etc.
Nos programas de regularização fundiária, a segurança da posse dos moradores de favela depende de formalização dos direitos sobre os bens e do registro destes no cartório de registro de imóveis. A legislação prevê diferentes mecanismos para essa regularização, podendo: assegurar o direito de posse ou de propriedade; titular direitos - individualmente por morador ou abrangendo várias moradias de uma área; gerar uma propriedade exclusiva ou compartilhada; e, ainda, gerar provisoriamente uma posse que posteriormente é convertida em propriedade. Enfim, atualmente a legislação disponibiliza uma ampla lista de instrumentos, os quais podem ser escolhidos de acordo com as características dos imóveis, da área na qual eles estão inseridos, dos fins para os quais são empregados, das escolhas feitas pelos entes responsáveis pela regularização fundiária, etc.
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A legitimação fundiária é uma forma de aquisição de propriedade de bens públicos ou privados e aplicável exclusivamente a bens inseridos em programas de regularização fundiária urbana (REURB). Por sua vez, o direito de laje é uma forma de aquisição de propriedade que gera um direito de propriedade independente, restrito ao pavimento ou laje de moradia, não abrangendo o terreno e demais pavimentos. A relação jurídica estabelecida entre o titular da propriedade da construção-base e os titulares das lajes limita-se a regras de vizinhança e direitos e deveres quanto às áreas comuns.
A legitimação fundiária é uma forma de aquisição de propriedade de bens públicos ou privados e aplicável exclusivamente a bens inseridos em programas de regularização fundiária urbana (REURB). Por sua vez, o direito de laje é uma forma de aquisição de propriedade que gera um direito de propriedade independente, restrito ao pavimento ou laje de moradia, não abrangendo o terreno e demais pavimentos. A relação jurídica estabelecida entre o titular da propriedade da construção-base e os titulares das lajes limita-se a regras de vizinhança e direitos e deveres quanto às áreas comuns.


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= Conclusão =
 
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= '''Conclusão''' =


A moradia é um direito fundamental que abrange não apenas ter um teto para morar, mas também a disponibilidade de condições essenciais para que a habitação e a região onde esteja localizada sejam ambientes seguros e com qualidades mínimas para garantir o desenvolvimento pessoal e social. Para que o exercício do direito à moradia seja juridicamente assegurado nas cidades, além da urbanização é igualmente necessário o uso de meios legais que garantam a posse ou a propriedade dos moradores sobre os bens.
A moradia é um direito fundamental que abrange não apenas ter um teto para morar, mas também a disponibilidade de condições essenciais para que a habitação e a região onde esteja localizada sejam ambientes seguros e com qualidades mínimas para garantir o desenvolvimento pessoal e social. Para que o exercício do direito à moradia seja juridicamente assegurado nas cidades, além da urbanização é igualmente necessário o uso de meios legais que garantam a posse ou a propriedade dos moradores sobre os bens.
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Existem interpretações equivocadas de que a propriedade individual, exclusiva e formalmente registrada, seria a única forma de proteção efetiva dos moradores. Entretanto, a segurança da moradia pode ser obtida tanto com instrumentos de regularização da posse, como de regularização da propriedade. E, ainda, uma vez que no sistema constitucional atual a posse é interpretada como condição de garantia da dignidade da pessoa humana, os direitos dos possuidores podem se sobrepor ao direito de proprietários que sejam titulares dos bens, mas que não cumpram a função social. Os direitos dos possuidores podem, ainda, gerar o direito a acesso a terras públicas em função da importância social da moradia e de estas também terem funções sociais a cumprir.
Existem interpretações equivocadas de que a propriedade individual, exclusiva e formalmente registrada, seria a única forma de proteção efetiva dos moradores. Entretanto, a segurança da moradia pode ser obtida tanto com instrumentos de regularização da posse, como de regularização da propriedade. E, ainda, uma vez que no sistema constitucional atual a posse é interpretada como condição de garantia da dignidade da pessoa humana, os direitos dos possuidores podem se sobrepor ao direito de proprietários que sejam titulares dos bens, mas que não cumpram a função social. Os direitos dos possuidores podem, ainda, gerar o direito a acesso a terras públicas em função da importância social da moradia e de estas também terem funções sociais a cumprir.


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= Referência bibliográfica =
 
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= '''REFERÊNCIAS''' =


CHRISTILLINO, Cristiano L. Sendo senhor: eu grilo. A desconstrução das cadeias sucessórias. In: O direito às avessas: por uma história social da propriedade. Org. M. Motta e M. Secreto. Niterói: EDUFF, 2011, pp. 193-213.
CHRISTILLINO, Cristiano L. Sendo senhor: eu grilo. A desconstrução das cadeias sucessórias. In: O direito às avessas: por uma história social da propriedade. Org. M. Motta e M. Secreto. Niterói: EDUFF, 2011, pp. 193-213.
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[[Category:Moradia]][[Category:Habitação]][[Category:Sem-teto]][[Category:Direitos]][[Category:Temática - Habitação]]