União dos Trabalhadores Favelados (UTF): mudanças entre as edições
Sem resumo de edição |
Sem resumo de edição |
||
| Linha 1: | Linha 1: | ||
<p style="text-align: justify">'''Autor: M<span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="page-break-before:always"><span style="color:#000000">arco Marques Pestana.</span></span></span></span>'''</p> <p style="text-align: justify"> | <p style="text-align: justify">'''Autor: M<span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="page-break-before:always"><span style="color:#000000">arco Marques Pestana.</span></span></span></span>'''</p> <p style="text-align: justify">[[File:UTF Carteirinha.jpg|thumb|center|500px]]</p> | ||
= Introdução = | = Introdução = | ||
<p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><font style="font-size: 12pt"><span style="color:#000000">Em meados dos anos 1950, inúmeras favelas cariocas enfrentavam ameaças de despejo através de ações judiciais movidas por particulares. Como resposta a essa insegurança generalizada, em abril de 1954 foi fundada a União dos Trabalhadores Favelados (UTF), primeira associação a organizar conjuntamente os moradores de diferentes favelas do Rio de Janeiro. Originando-se de uma iniciativa dos moradores do Borel, a UTF adotou um modelo federativo, em que a entidade local de cada favela indicava seu representante para compor o conselho dirigente. Em sua fundação, já contava com a adesão de outras sete favelas: Salgueiro, Formiga, Mangueira, Santa Marta, Macaco, Esqueleto e Coelho Neto</span>[[#sdfootnote1sym|<span style="color:#000000"><sup>1</sup></span>]]<span style="color:#000000">. Nos anos subsequentes, a entidade expandiu-se continuamente, a ponto de contar com 45 núcleos em 1958</span>[[#sdfootnote2sym|<span style="color:#000000"><sup>2</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></font></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><font style="font-size: 12pt">Ao longo de todo o seu período de existência, a atuação da União foi orientada centralmente pelo combate às tentativas de despejo, pela defesa do reconhecimento formal do direito de permanência dos favelados em suas casas e pela reivindicação da instalação nas favelas de toda a infraestrutura urbana presente em outras áreas da cidade (calçamento, iluminação, redes de água e esgoto, escolas, postos de saúde, etc). Em seus documentos e declarações públicas, a entidade defendia a perspectiva de que tais questões, longe de constituírem problemas localizados, relacionavam-se ao conjunto dos processos sociais e políticos que atravessavam a sociedade brasileira. Essa concepção ficou expressa, por exemplo, em seu projeto de estatuto de 1954, cujo Artigo 1</font><sup><font style="font-size: 12pt">o</font></sup><font style="font-size: 12pt">afirmava o seguinte:</font></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify; margin-left: 160px"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="color:#000000">“</span><font style="font-size: 12pt"><span style="color:#000000">A UNIÃO DOS TRABALHADORES FAVELADOS (...) tem como finalidade congregar todos os trabalhadores, sem distinção de crenças religiosas, credos políticos, filosófico ou partidos, raça, nacionalidade ou sexo, que em face das condições econômicas existentes no Brasil, vêm-se na contingência de morar em barracões ou choças, nos terrenos baldios da Capital da República, levando existência de párias da sociedade, muitos emigrados de terras de cultura, pela miséria e abandono dos governos, de modo que, unidos, consigam impor aos que socialmente os oprimem, a prevalência do irrecusável direito a uma existência condigna, nos termos da Constituição Brasileira”</span>[[#sdfootnote3sym|<span style="color:#000000"><sup>3</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></font></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"> </p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><font style="font-size: 12pt">Dessa forma, ficava nítido que os moradores das favelas eram compreendidos como uma parte do conjunto mais amplo de trabalhadores, enfrentando dificuldades particulares (“contingência”) para garantir o pleno acesso à moradia e à cidade. Indo além, afirmava-se também de forma clara a responsabilidade dos diversos níveis de governo na perpetuação de tais dificuldades, bem como a existência de grupos sociais dotados de interesses diametralmente opostos aos dos trabalhadores favelados (os “que socialmente os oprimem”). Partindo dessas concepções, a UTF incorporou continuamente à sua pauta reivindicações relativas a outros aspectos da vida dos trabalhadores e buscou organizar outros setores das classes subalternas. Em síntese, pode-se afirmar que a entidade constituiu uma das expressões do processo de desenvolvimento de uma consciência de classe por parte dos trabalhadores cariocas naquele período histórico.</font></span></span></span></span></p> | <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><font style="font-size: 12pt"><span style="color:#000000">Em meados dos anos 1950, inúmeras favelas cariocas enfrentavam ameaças de despejo através de ações judiciais movidas por particulares. Como resposta a essa insegurança generalizada, em abril de 1954 foi fundada a União dos Trabalhadores Favelados (UTF), primeira associação a organizar conjuntamente os moradores de diferentes favelas do Rio de Janeiro. Originando-se de uma iniciativa dos moradores do Borel, a UTF adotou um modelo federativo, em que a entidade local de cada favela indicava seu representante para compor o conselho dirigente. Em sua fundação, já contava com a adesão de outras sete favelas: Salgueiro, Formiga, Mangueira, Santa Marta, Macaco, Esqueleto e Coelho Neto</span>[[#sdfootnote1sym|<span style="color:#000000"><sup>1</sup></span>]]<span style="color:#000000">. Nos anos subsequentes, a entidade expandiu-se continuamente, a ponto de contar com 45 núcleos em 1958</span>[[#sdfootnote2sym|<span style="color:#000000"><sup>2</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></font></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><font style="font-size: 12pt">Ao longo de todo o seu período de existência, a atuação da União foi orientada centralmente pelo combate às tentativas de despejo, pela defesa do reconhecimento formal do direito de permanência dos favelados em suas casas e pela reivindicação da instalação nas favelas de toda a infraestrutura urbana presente em outras áreas da cidade (calçamento, iluminação, redes de água e esgoto, escolas, postos de saúde, etc). Em seus documentos e declarações públicas, a entidade defendia a perspectiva de que tais questões, longe de constituírem problemas localizados, relacionavam-se ao conjunto dos processos sociais e políticos que atravessavam a sociedade brasileira. Essa concepção ficou expressa, por exemplo, em seu projeto de estatuto de 1954, cujo Artigo 1</font><sup><font style="font-size: 12pt">o</font></sup><font style="font-size: 12pt">afirmava o seguinte:</font></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify; margin-left: 160px"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="color:#000000">“</span><font style="font-size: 12pt"><span style="color:#000000">A UNIÃO DOS TRABALHADORES FAVELADOS (...) tem como finalidade congregar todos os trabalhadores, sem distinção de crenças religiosas, credos políticos, filosófico ou partidos, raça, nacionalidade ou sexo, que em face das condições econômicas existentes no Brasil, vêm-se na contingência de morar em barracões ou choças, nos terrenos baldios da Capital da República, levando existência de párias da sociedade, muitos emigrados de terras de cultura, pela miséria e abandono dos governos, de modo que, unidos, consigam impor aos que socialmente os oprimem, a prevalência do irrecusável direito a uma existência condigna, nos termos da Constituição Brasileira”</span>[[#sdfootnote3sym|<span style="color:#000000"><sup>3</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></font></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"> </p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><font style="font-size: 12pt">Dessa forma, ficava nítido que os moradores das favelas eram compreendidos como uma parte do conjunto mais amplo de trabalhadores, enfrentando dificuldades particulares (“contingência”) para garantir o pleno acesso à moradia e à cidade. Indo além, afirmava-se também de forma clara a responsabilidade dos diversos níveis de governo na perpetuação de tais dificuldades, bem como a existência de grupos sociais dotados de interesses diametralmente opostos aos dos trabalhadores favelados (os “que socialmente os oprimem”). Partindo dessas concepções, a UTF incorporou continuamente à sua pauta reivindicações relativas a outros aspectos da vida dos trabalhadores e buscou organizar outros setores das classes subalternas. Em síntese, pode-se afirmar que a entidade constituiu uma das expressões do processo de desenvolvimento de uma consciência de classe por parte dos trabalhadores cariocas naquele período histórico.</font></span></span></span></span></p> | ||
| Linha 9: | Linha 9: | ||
<span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal">Sem dúvida, grande parte da força da UTF derivava da disposição de milhares de moradores de diversas favelas para se mobilizarem em defesa de seus interesses. Entretanto, a entidade não teria alcançado a mesma difusão e dinamismo se não fosse pela ação de um número mais restrito de agentes dotados de projetos políticos bastante articulados e de significativa capacidade de organização. Nesse sentido, a atuação dos militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) mostrou-se absolutamente indispensável.</span></span></span></span></span> | <span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal">Sem dúvida, grande parte da força da UTF derivava da disposição de milhares de moradores de diversas favelas para se mobilizarem em defesa de seus interesses. Entretanto, a entidade não teria alcançado a mesma difusão e dinamismo se não fosse pela ação de um número mais restrito de agentes dotados de projetos políticos bastante articulados e de significativa capacidade de organização. Nesse sentido, a atuação dos militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) mostrou-se absolutamente indispensável.</span></span></span></span></span> | ||
<p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="color:#000000"><span style="font-weight:normal">Ao longo de todo o período de existência da União, o PCB colocou sua estrutura a serviço das lutas dos favelados. Seus principais órgãos de imprensa, com destaque para o jornal </span>''<span style="font-weight:normal">Imprensa Popular</span>''</span><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">, noticiavam rotineiramente as iniciativas e conquistas da UTF. Seus parlamentares, em nível municipal e federal, contribuíam para dar visibilidade às mobilizações e apresentavam projetos de lei de interesse dos favelados. Indo além, alguns dos principais dirigentes da própria UTF eram militantes do partido que viviam em favelas, incluindo Ezequiel Nascimento e [[Sebastião_Bonifácio]], que presidiram a entidade</span>[[#sdfootnote14sym|<span style="color:#000000"><sup>14</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">No que se refere à trajetória da União, a centralidade dessas lideranças faveladas do PCB só foi superada pela figura do advogado Antoine de Magarinos Torres. Embora não vivesse em nenhuma favela, Magarinos esteve envolvido com quase todos os aspectos da atuação da UTF: foi um dos artífices de sua fundação, sediando em sua casa a reunião inicial, advogou em favor de favelas ameaçadas de despejo, participou de comissões para negociar com autoridades, organizou diversos comícios, percorreu inúmeras favelas para estimular a fundação de núcleos de base, foi secretário-geral e chegou até mesmo a ser preso juntamente com alguns militantes favelados. Nas eleições de 1958 e 1960, Magarinos foi candidato, respectivamente, às Câmaras Municipal e Federal, contando com suporte aberto da militância da UTF.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">A relação de Magarinos com o PCB sofreu oscilações ao longo do tempo. No início dos anos 1950, antes mesma da fundação da União, o advogado atuou de forma bastante próxima ao partido em inúmeras iniciativas políticas, numa convergência que também se verifica nos primeiros momentos da UTF. Essa proximidade, associada a afirmações contidas no prontuário mantido pela polícia política sobre as atividades de Magarinos, conduziu muitos analistas a asseverarem que o advogado era um militante pecebista. Entretanto, durante a campanha eleitoral de 1958, ficaram evidentes algumas rusgas entre ele e o partido, numa polêmica que pode ser acompanhada nas páginas da</span></span>''<span style="font-weight:normal">Imprensa Popular</span>''<span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">. Diferenças de orientação política ficariam ainda mais explícitas no momento do golpe de 1964, quando Magarinos se dirigiu à rádio Mayrink Veiga, de onde transmitiu o que definiu como sendo “(...) a palavra de ordem do Deputado Leonel Brizola; também a palavra de ordem da União dos Trabalhadores Favelados (...)”. De acordo com seu pronunciamento, a determinação da agremiação teria sido a seguinte:</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify; margin-left: 160px"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%">“<span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">(...) associados de todas as favelas do Estado da Guanabara, se mantenham com seus rádios sintonizados com a Mayrink Veiga, e cumprindo (determinações) ordens do CGT, permaneçam em suas casas, obedientes à greve geral decreta[da]. Organizem-se em grupo de onze, sob a chefia de um chefe e sub-chefia de outro trabalhador. (...) A determinação dos trabalhadores favelados é de apoio à legalidade, na defesa do Mandato do Presidente João Goulart, contra os golpistas, contra a ameaça do Governador Carlos Lacerda em luta contra o Fascista que não respeita o lar dos trabalhadores favelados. (...) Se o Sr. Ministro da Guerra ordenar os trabalhadores favelados em defesa da legalidade do Mandato de Jango, estarão prontos para qualquer sacrifício e cumprimento de qualquer ordem.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify; margin-left: 160px"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">As armas chegarão às nossas mãos para defesa do homem que traz a defesa da Carta do Pensamento de Getúlio, e os favelados não se esquecem de que Vargas sacrificado pelos gorilas, lembrou-se dos trabalhadores pobres no seu último instante de vida (...)”</span>[[#sdfootnote15sym|<span style="color:#000000"><sup>15</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"> </p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">Como se sabe, naquela quadra histórica, O PCB não priorizava a organização de uma resistência armada (que, naquele momento, acabou não se efetivando) e não teve nenhuma participação nos Grupos dos Onze, dirigidos por Brizola. Considerando essas importantes diferenças políticas, a vinculação direta de Magarinos ao PCB torna-se mais problemática, ainda que não se deva descartar a hipótese de que ele efetivamente tenha composto os quadros do partido, ainda que apenas durante determinado período.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">Qualquer que fosse a natureza das relações entre o advogado e o partido, não houve nenhum obstáculo à atuação conjunta no âmbito da UTF. Com efeito, Magarinos e o PCB sempre compuseram um mesmo campo político, cujas diretrizes foram fundamentais para a orientação das mobilizações da União. Nesse sentido, cabe destacar a evolução progressiva da entidade em direção à inserção na aliança nacional-reformista, que se constituiu a partir de meados dos anos 1950 e tinha a aliança PCB-PTB como principal expressão partidária. Como coroamento desse processo, foi organizado em 1959 o I Congresso dos Trabalhadores Favelados, que deliberou pela fundação de uma nova entidade, a Coligação dos Trabalhadores Favelados da Cidade do Rio de Janeiro, representando a possibilidade de um salto de qualidade na inserção do PTB no movimento de favelados.</span></span></span></span></span></span></p> | <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="color:#000000"><span style="font-weight:normal">Ao longo de todo o período de existência da União, o PCB colocou sua estrutura a serviço das lutas dos favelados. Seus principais órgãos de imprensa, com destaque para o jornal </span>''<span style="font-weight:normal">Imprensa Popular</span>''</span><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">, noticiavam rotineiramente as iniciativas e conquistas da UTF. Seus parlamentares, em nível municipal e federal, contribuíam para dar visibilidade às mobilizações e apresentavam projetos de lei de interesse dos favelados. Indo além, alguns dos principais dirigentes da própria UTF eram militantes do partido que viviam em favelas, incluindo Ezequiel Nascimento e [[Sebastião_Bonifácio|Sebastião_Bonifácio]], que presidiram a entidade</span>[[#sdfootnote14sym|<span style="color:#000000"><sup>14</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">No que se refere à trajetória da União, a centralidade dessas lideranças faveladas do PCB só foi superada pela figura do advogado Antoine de Magarinos Torres. Embora não vivesse em nenhuma favela, Magarinos esteve envolvido com quase todos os aspectos da atuação da UTF: foi um dos artífices de sua fundação, sediando em sua casa a reunião inicial, advogou em favor de favelas ameaçadas de despejo, participou de comissões para negociar com autoridades, organizou diversos comícios, percorreu inúmeras favelas para estimular a fundação de núcleos de base, foi secretário-geral e chegou até mesmo a ser preso juntamente com alguns militantes favelados. Nas eleições de 1958 e 1960, Magarinos foi candidato, respectivamente, às Câmaras Municipal e Federal, contando com suporte aberto da militância da UTF.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">A relação de Magarinos com o PCB sofreu oscilações ao longo do tempo. No início dos anos 1950, antes mesma da fundação da União, o advogado atuou de forma bastante próxima ao partido em inúmeras iniciativas políticas, numa convergência que também se verifica nos primeiros momentos da UTF. Essa proximidade, associada a afirmações contidas no prontuário mantido pela polícia política sobre as atividades de Magarinos, conduziu muitos analistas a asseverarem que o advogado era um militante pecebista. Entretanto, durante a campanha eleitoral de 1958, ficaram evidentes algumas rusgas entre ele e o partido, numa polêmica que pode ser acompanhada nas páginas da</span></span>''<span style="font-weight:normal">Imprensa Popular</span>''<span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">. Diferenças de orientação política ficariam ainda mais explícitas no momento do golpe de 1964, quando Magarinos se dirigiu à rádio Mayrink Veiga, de onde transmitiu o que definiu como sendo “(...) a palavra de ordem do Deputado Leonel Brizola; também a palavra de ordem da União dos Trabalhadores Favelados (...)”. De acordo com seu pronunciamento, a determinação da agremiação teria sido a seguinte:</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify; margin-left: 160px"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%">“<span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">(...) associados de todas as favelas do Estado da Guanabara, se mantenham com seus rádios sintonizados com a Mayrink Veiga, e cumprindo (determinações) ordens do CGT, permaneçam em suas casas, obedientes à greve geral decreta[da]. Organizem-se em grupo de onze, sob a chefia de um chefe e sub-chefia de outro trabalhador. (...) A determinação dos trabalhadores favelados é de apoio à legalidade, na defesa do Mandato do Presidente João Goulart, contra os golpistas, contra a ameaça do Governador Carlos Lacerda em luta contra o Fascista que não respeita o lar dos trabalhadores favelados. (...) Se o Sr. Ministro da Guerra ordenar os trabalhadores favelados em defesa da legalidade do Mandato de Jango, estarão prontos para qualquer sacrifício e cumprimento de qualquer ordem.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify; margin-left: 160px"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">As armas chegarão às nossas mãos para defesa do homem que traz a defesa da Carta do Pensamento de Getúlio, e os favelados não se esquecem de que Vargas sacrificado pelos gorilas, lembrou-se dos trabalhadores pobres no seu último instante de vida (...)”</span>[[#sdfootnote15sym|<span style="color:#000000"><sup>15</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"> </p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">Como se sabe, naquela quadra histórica, O PCB não priorizava a organização de uma resistência armada (que, naquele momento, acabou não se efetivando) e não teve nenhuma participação nos Grupos dos Onze, dirigidos por Brizola. Considerando essas importantes diferenças políticas, a vinculação direta de Magarinos ao PCB torna-se mais problemática, ainda que não se deva descartar a hipótese de que ele efetivamente tenha composto os quadros do partido, ainda que apenas durante determinado período.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-style:normal"><span style="font-weight:normal">Qualquer que fosse a natureza das relações entre o advogado e o partido, não houve nenhum obstáculo à atuação conjunta no âmbito da UTF. Com efeito, Magarinos e o PCB sempre compuseram um mesmo campo político, cujas diretrizes foram fundamentais para a orientação das mobilizações da União. Nesse sentido, cabe destacar a evolução progressiva da entidade em direção à inserção na aliança nacional-reformista, que se constituiu a partir de meados dos anos 1950 e tinha a aliança PCB-PTB como principal expressão partidária. Como coroamento desse processo, foi organizado em 1959 o I Congresso dos Trabalhadores Favelados, que deliberou pela fundação de uma nova entidade, a Coligação dos Trabalhadores Favelados da Cidade do Rio de Janeiro, representando a possibilidade de um salto de qualidade na inserção do PTB no movimento de favelados.</span></span></span></span></span></span></p> | ||
= Repressão, oposição e esvaziamento da UTF = | = Repressão, oposição e esvaziamento da UTF = | ||
<p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">A aprovação da mencionada “Lei das Favelas”, em setembro de 1956, ao proibir temporariamente os despejos de favelas, inaugurou uma conjuntura marcada por uma diminuição da frequência das grandes mobilizações de massa por parte da UTF. Nesse contexto de redução da visibilidade pública da entidade, em janeiro de 1957, agentes da Divisão de Polícia Política e Social (DPS) desencadearam uma operação que resultou no fechamento de sedes da UTF, na apreensão de documentos e na detenção de militantes. Em documentos internos, os responsáveis por essa ação a justificavam pela necessidade de combater a “subversão bolchevista” que configuraria a real motivação de sua existência e defendiam a necessidade de encerrar as suas atividades</span>[[#sdfootnote16sym|<span style="color:#000000"><sup>16</sup></span>]]<span style="color:#000000">. Mediante alguns ajustes burocráticos, a União rapidamente conseguiu retomar o seu funcionamento legal, frustrando as intenções da polícia política. Entretanto, o caráter planejado, coordenado e agressivo da operação indicava que a União se tornara objeto de atenção do aparato repressivo.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">No final de 1960, com a posse de Carlos Lacerda (UDN) como primeiro governador eleito do recém-criado estado da Guanabara, os entraves à atuação da UTF ampliaram-se ainda mais. Após a sua posse, Lacerda colocou em prática, por meio da Coordenação de Serviços Sociais, uma política de realização de melhorias urbanas em diversas favelas. Batizada de “Operação Mutirão”, essa iniciativa tornava a associação local de cada favela uma interlocutora direta e individual da Coordenação, que tinha a última palavra sobre as obras a serem executadas. Apesar dos limites da Operação, como o não reconhecimento de qualquer direito de propriedade para os moradores ou a subordinação das associações à Coordenação, parcela significativa do movimento de favelas optou por aderir à proposta. Dessa forma, foi enfraquecido o princípio de organização coletiva entre favelas que conferia a força da UTF, ao mesmo tempo em que a ênfase do debate público era afastada do problema da propriedade fundiária</span>[[#sdfootnote17sym|<span style="color:#000000"><sup>17</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal">A Operação Mutirão funcionou até meados de 1962, quando Lacerda exonerou do cargo de Coordenador dos Serviços Sociais o seu idealizador, José Arthur Rios. A partir de então, a política para as favelas cariocas foi reorientada no sentido da adoção de uma postura ativamente remocionista.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">Essa modificação coincidiu com uma forte crise vivenciada pela UTF na área da favela da Maré, detonada pelo embate entre o núcleo local da entidade e um grupo dissidente, que contava com apoio de policiais e agentes do Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas (SERFHA), um órgão do governo estadual. O lance decisivo da disputa deu-se em abril de 1962, com o assassinato de um dos dissidentes, Eufrásio da Silva, por um militante da UTF, José Vasconcelos (conhecido como Zé Russo), que alegou legítima defesa. No curso das investigações, Magarinos Torres foi acusado de ser o mandante do crime, que teria sido premeditado. Embora tal acusação não tenha sido comprovada, o caso recebeu ampla cobertura da imprensa, contribuindo para difundir uma imagem negativa da UTF e de um de seus principais líderes, impactando sua capacidade organizativa</span>[[#sdfootnote18sym|<span style="color:#000000"><sup>18</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">Enfraquecida por conta dessa série de embates, a União dos Trabalhadores Favelados teve as suas atividades interrompidas pela ação repressiva da ditadura instalada com o golpe de 1964. Mesmo o núcleo inicial e mais dinâmico, do Borel, foi obrigado pelo novo regime a alterar o seu nome, passando a se chamar União dos Moradores do Morro do Borel e encerrando definitivamente a trajetória da UTF.</span>[[#sdfootnote19sym|<span style="color:#000000"><sup>19</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></p> | <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">A aprovação da mencionada “Lei das Favelas”, em setembro de 1956, ao proibir temporariamente os despejos de favelas, inaugurou uma conjuntura marcada por uma diminuição da frequência das grandes mobilizações de massa por parte da UTF. Nesse contexto de redução da visibilidade pública da entidade, em janeiro de 1957, agentes da Divisão de Polícia Política e Social (DPS) desencadearam uma operação que resultou no fechamento de sedes da UTF, na apreensão de documentos e na detenção de militantes. Em documentos internos, os responsáveis por essa ação a justificavam pela necessidade de combater a “subversão bolchevista” que configuraria a real motivação de sua existência e defendiam a necessidade de encerrar as suas atividades</span>[[#sdfootnote16sym|<span style="color:#000000"><sup>16</sup></span>]]<span style="color:#000000">. Mediante alguns ajustes burocráticos, a União rapidamente conseguiu retomar o seu funcionamento legal, frustrando as intenções da polícia política. Entretanto, o caráter planejado, coordenado e agressivo da operação indicava que a União se tornara objeto de atenção do aparato repressivo.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">No final de 1960, com a posse de Carlos Lacerda (UDN) como primeiro governador eleito do recém-criado estado da Guanabara, os entraves à atuação da UTF ampliaram-se ainda mais. Após a sua posse, Lacerda colocou em prática, por meio da Coordenação de Serviços Sociais, uma política de realização de melhorias urbanas em diversas favelas. Batizada de “Operação Mutirão”, essa iniciativa tornava a associação local de cada favela uma interlocutora direta e individual da Coordenação, que tinha a última palavra sobre as obras a serem executadas. Apesar dos limites da Operação, como o não reconhecimento de qualquer direito de propriedade para os moradores ou a subordinação das associações à Coordenação, parcela significativa do movimento de favelas optou por aderir à proposta. Dessa forma, foi enfraquecido o princípio de organização coletiva entre favelas que conferia a força da UTF, ao mesmo tempo em que a ênfase do debate público era afastada do problema da propriedade fundiária</span>[[#sdfootnote17sym|<span style="color:#000000"><sup>17</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="color:#000000"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal">A Operação Mutirão funcionou até meados de 1962, quando Lacerda exonerou do cargo de Coordenador dos Serviços Sociais o seu idealizador, José Arthur Rios. A partir de então, a política para as favelas cariocas foi reorientada no sentido da adoção de uma postura ativamente remocionista.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">Essa modificação coincidiu com uma forte crise vivenciada pela UTF na área da favela da Maré, detonada pelo embate entre o núcleo local da entidade e um grupo dissidente, que contava com apoio de policiais e agentes do Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas (SERFHA), um órgão do governo estadual. O lance decisivo da disputa deu-se em abril de 1962, com o assassinato de um dos dissidentes, Eufrásio da Silva, por um militante da UTF, José Vasconcelos (conhecido como Zé Russo), que alegou legítima defesa. No curso das investigações, Magarinos Torres foi acusado de ser o mandante do crime, que teria sido premeditado. Embora tal acusação não tenha sido comprovada, o caso recebeu ampla cobertura da imprensa, contribuindo para difundir uma imagem negativa da UTF e de um de seus principais líderes, impactando sua capacidade organizativa</span>[[#sdfootnote18sym|<span style="color:#000000"><sup>18</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></p> <p style="text-align: justify"><span style="font-size:medium"><span style="font-family:Times New Roman,Times,serif"><span style="line-height:150%"><span style="font-weight:normal"><span style="color:#000000">Enfraquecida por conta dessa série de embates, a União dos Trabalhadores Favelados teve as suas atividades interrompidas pela ação repressiva da ditadura instalada com o golpe de 1964. Mesmo o núcleo inicial e mais dinâmico, do Borel, foi obrigado pelo novo regime a alterar o seu nome, passando a se chamar União dos Moradores do Morro do Borel e encerrando definitivamente a trajetória da UTF.</span>[[#sdfootnote19sym|<span style="color:#000000"><sup>19</sup></span>]]<span style="color:#000000">.</span></span></span></span></span></p> | ||
