Pertencimento ao Complexo do Alemão: mudanças entre as edições
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'''Autor''': [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Usuário:Thiago_Matiolli&action=edit&redlink=1 Thiago Oliveira Lima Matiolli]. | '''Autor''': [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Usuário:Thiago_Matiolli&action=edit&redlink=1 Thiago Oliveira Lima Matiolli]. | ||
= Introdução = | |||
É comum entre pesquisadoras(es), sobretudo aquelas(es) que se pretendem estudar as favelas, tomar como pressuposto o fato de que as pessoas que vivem em áreas que hoje são percebidas como complexo de favelas não se vêem como moradoras de um “complexo”. Essa premissa, que não vem acompanhada de evidências empíricas rigorosas, é suficiente para que tais “especialistas” passem a afirmar que essa perspectiva espacial é algo construído pelo Estado e imposto a quem habita as áreas faveladas, numa lógica militarizada. Negligenciando, assim, em alguma medida, a agência de quem vive nesses espaços. | É comum entre pesquisadoras(es), sobretudo aquelas(es) que se pretendem estudar as favelas, tomar como pressuposto o fato de que as pessoas que vivem em áreas que hoje são percebidas como complexo de favelas não se vêem como moradoras de um “complexo”. Essa premissa, que não vem acompanhada de evidências empíricas rigorosas, é suficiente para que tais “especialistas” passem a afirmar que essa perspectiva espacial é algo construído pelo Estado e imposto a quem habita as áreas faveladas, numa lógica militarizada. Negligenciando, assim, em alguma medida, a agência de quem vive nesses espaços. | ||
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Há, pelo menos, duas outras motivações para que essa resposta negativa tenha sido dada. A primeira, por exemplo, é se a pessoa que for indagada tivesse se mudado para essa região na década de 1980 ou antes, ela, de fato, não foi morar no Complexo do Alemão, mas em outro lugar, seja Olaria, Ramos, Inhauma ou Bonsucesso. A lei 2055 de 1993 mudou o nome do bairro onde ela mora (ou morava), e isso pode não ter-lhe sido comunicado; assim, mudou-se o nome bairro onde essa moradora ou morador vive e não lhe contaram. O que, também explicaria, porque há quem situe o lugar em que reside como “rua x, 'complexo do alemão', Ramos”, considerando este último como a referência formal de local de moradia. | Há, pelo menos, duas outras motivações para que essa resposta negativa tenha sido dada. A primeira, por exemplo, é se a pessoa que for indagada tivesse se mudado para essa região na década de 1980 ou antes, ela, de fato, não foi morar no Complexo do Alemão, mas em outro lugar, seja Olaria, Ramos, Inhauma ou Bonsucesso. A lei 2055 de 1993 mudou o nome do bairro onde ela mora (ou morava), e isso pode não ter-lhe sido comunicado; assim, mudou-se o nome bairro onde essa moradora ou morador vive e não lhe contaram. O que, também explicaria, porque há quem situe o lugar em que reside como “rua x, 'complexo do alemão', Ramos”, considerando este último como a referência formal de local de moradia. | ||
A outra explicação é que, internamente ao Complexo do Alemão, há diversas localidades, de modo que o pertencimento inicial pode ser à Nova Brasília ou à Alvorada, à qual a filiação ao complexo se sobrepõe. Assim, alguém pode localizar sua moradia na Nova Brasília, no Complexo ou ainda a ambos ao mesmo tempo: “moro na Nova Brasília, no Complexo do Alemão”. | A outra explicação é que, internamente ao Complexo do Alemão, há diversas localidades, de modo que o pertencimento inicial pode ser à Nova Brasília ou à Alvorada, à qual a filiação ao complexo se sobrepõe. Assim, alguém pode localizar sua moradia na Nova Brasília, no Complexo ou ainda a ambos ao mesmo tempo: “moro na Nova Brasília, no Complexo do Alemão”<ref>Ou ainda “moro na Nova Brasília, no Complexo do Alemão em Ramos”.</ref>. | ||
Então, para se apreender como as pessoas se identificam ou pertencem ao Complexo do Alemão é preciso entender que esse pertencimento seguirá perspectivas variáveis e estratégicas. Trata-se de mais uma escala espacial que se sobrepõe ao lugar onde se vive e pode ser acionada se necessário, isto é, uma pessoa pode se ver como moradora, ao mesmo tempo, da Nova Brasília e do Complexo do Alemão, tal como, da Zona da Leopoldina, da cidade e do estado do Rio de Janeiro; e, ainda, deste país chamado Brasil. | Então, para se apreender como as pessoas se identificam ou pertencem ao Complexo do Alemão é preciso entender que esse pertencimento seguirá perspectivas variáveis e estratégicas. Trata-se de mais uma escala espacial que se sobrepõe ao lugar onde se vive e pode ser acionada se necessário, isto é, uma pessoa pode se ver como moradora, ao mesmo tempo, da Nova Brasília e do Complexo do Alemão, tal como, da Zona da Leopoldina, da cidade e do estado do Rio de Janeiro; e, ainda, deste país chamado Brasil. | ||
Neste verbete, não se vai abordar a relação de moradoras e moradores com o Complexo do Alemão ao longo do século, haja vista que essa denominação começou a ser produzida apenas na década de 1980, até que virasse bairro na década seguinte. Mas, resgatar o processo histórico de produção desse novo espaço na cidade e como ele passou a ser experimentado pelos moradores nas últimas décadas. | Neste verbete, não se vai abordar a relação de moradoras e moradores com o Complexo do Alemão ao longo do século<ref>Para este aspecto ver verbete https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Hist%C3%B3rico_fundi%C3%A1rio_do_Complexo_do_Alem%C3%A3o ou o trabalho de Couto e Rodrigues (2013).</ref>, haja vista que essa denominação começou a ser produzida apenas na década de 1980, até que virasse bairro na década seguinte. Mas, resgatar o processo histórico de produção desse novo espaço na cidade e como ele passou a ser experimentado pelos moradores nas últimas décadas. | ||
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= O Morro do Alemão como um aglomerado de favelas = | |||
Talvez a primeira menção pública a um possível Complexo do Alemão possa ser resgatada de uma edição do Jornal do Brasil de 13 de Janeiro de 1980, através da transcrição de uma fala do então Secretário Municipal de Desenvolvimento Social do Município do Rio de Janeiro, Marcos Candau, ao abordar o crescimento do processo de favelização da cidade. Ao listar as favelas que mais teriam crescido nos anos anteriores, ele afirmava: | Talvez a primeira menção pública a um possível Complexo do Alemão possa ser resgatada de uma edição do Jornal do Brasil de 13 de Janeiro de 1980, através da transcrição de uma fala do então Secretário Municipal de Desenvolvimento Social do Município do Rio de Janeiro, Marcos Candau, ao abordar o crescimento do processo de favelização da cidade. Ao listar as favelas que mais teriam crescido nos anos anteriores, ele afirmava: | ||
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''"Com 24.535 barracos e uma população de 122 mil 675 habitantes, o morro do Alemão é, na verdade, um aglomerado de favelas (Nova Brasília, Grota, Alvorada, Alemão, Alto Florestal e Itararé) que não para de crescer e já ocupa uma área de área de 973.600 m2 segundo o último levantamento de 1979"'' (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 20). | ''"Com 24.535 barracos e uma população de 122 mil 675 habitantes, o morro do Alemão é, na verdade, um aglomerado de favelas (Nova Brasília, Grota, Alvorada, Alemão, Alto Florestal e Itararé) que não para de crescer e já ocupa uma área de área de 973.600 m2 segundo o último levantamento de 1979"'' (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 20). | ||
A reportagem segue trazendo alguns “personagens”: Severino dias, que fora morar lá após casar, em um “puxado” na casa n. 23 da Avenida Central e, seria, segundo o jornal, de “puxado em puxado” a forma pela qual o Alemão se expandia; Jorge da Costa, “empreiteiro do Morro do Alemão”, para quem o que não faltava ali, era trabalho; e Manoel Hermógenes, o “morador mais antigo do Morro do Alemão”, que teria chegado ao Alemão em 15 de Dezembro de 1946. Há também menção à UDAMA (Associação de Defesa e Assistência dos Moradores do Morro do Alemão) que fazia a manutenção das bombas hidráulicas que bombeavam água para o alto do morro e de duas creches, além de fornecer documentos aos “favelados”. Segundo o tesoureiro, à época, João Alexandre da Silva, o sonho da UDAMA era “ver a favela urbanizada”. Já a maior aspiração dos moradores seria a construção de galerias de esgoto. | A reportagem segue trazendo alguns “personagens”: Severino dias, que fora morar lá após casar, em um “puxado” na casa n. 23 da Avenida Central<ref>“O preço do barraco na Avenida Central – ponto chique do morro, onde existe acesso para automóveis graças a rua aberta em regime de mutirão – está em torno dos Cr$ 70 mil, quantia que cai até Cr$ 20 mil nas sinuosas vielas transversais, encharcadas por despejos de esgotos e sem calçamento. O Morro do Alemão mistura os tradicionais barracos de tábuas com casa de alvenaria dotadas de algum conforto: fossas, água encanada, luz, televisão e até aparelhos de ar condicionado” (Jornal do Brasil, 13 de Janeiro de 1980, pg. 20). </ref> e, seria, segundo o jornal, de “puxado em puxado” a forma pela qual o Alemão se expandia; Jorge da Costa, “empreiteiro do Morro do Alemão”, para quem o que não faltava ali, era trabalho; e Manoel Hermógenes, o “morador mais antigo do Morro do Alemão”, que teria chegado ao Alemão em 15 de Dezembro de 1946. Há também menção à UDAMA (Associação de Defesa e Assistência dos Moradores do Morro do Alemão) que fazia a manutenção das bombas hidráulicas que bombeavam água para o alto do morro e de duas creches, além de fornecer documentos aos “favelados”. Segundo o tesoureiro, à época, João Alexandre da Silva, o sonho da UDAMA era “ver a favela urbanizada”. Já a maior aspiração dos moradores seria a construção de galerias de esgoto. | ||
Partindo da fala de João Alexandre, o Jornal apresenta esta caracterização do Alemão: "''o morro em si, sem as favelas que o cercam, é delimitado pelas Ruas Joaquim de Queirós, Armando Sodré, Olaria e Estrada do Itararé e Rua Paranhos, em Ramos. O último levantamento oficial foi feito em 1972. Os dados: 18 mil moradores e 4 mil casas, número que não cessou de crescer garante o tesoureiro''” (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 20). | Partindo da fala de João Alexandre, o Jornal apresenta esta caracterização do Alemão: "''o morro em si, sem as favelas que o cercam, é delimitado pelas Ruas Joaquim de Queirós, Armando Sodré, Olaria e Estrada do Itararé e Rua Paranhos, em Ramos. O último levantamento oficial foi feito em 1972. Os dados: 18 mil moradores e 4 mil casas, número que não cessou de crescer garante o tesoureiro''” (Jornal do Brasil, 13/01/1980, pg. 20). | ||
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O que as reportagens retratam é a emergência de um novo espaço na cidade, uma nova escala territorial para pensar as favelas. A caracterização transcrita acima traz uma tensão entre o morro (do Alemão) em si e esse novo espaço, que virá a ser, anos depois, o Complexo do Alemão. Mais do que o nome, são lugares com delimitação e população diferentes e, a princípio, intercambiáveis; o Morro do Alemão passa a ter simultaneamente 4 mil e 24 mil “barracos”, 18 mil e 122 mil moradores. Com o passar do tempo, e com esse complemento “complexo”, a diferenciação entre esses dois espaços vai se consolidando, e a cidade verá surgir um de seus maiores espaços favelados nas décadas seguintes. O que seria percebido dois anos depois da entrevista, com a escolha do “Morro do Alemão”, composto por seis favelas, para receber um diagnóstico da Prefeitura, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), junto com o Jacarezinho, dois dos maiores espaços favelados da cidade à época. | O que as reportagens retratam é a emergência de um novo espaço na cidade, uma nova escala territorial para pensar as favelas. A caracterização transcrita acima traz uma tensão entre o morro (do Alemão) em si e esse novo espaço, que virá a ser, anos depois, o Complexo do Alemão. Mais do que o nome, são lugares com delimitação e população diferentes e, a princípio, intercambiáveis; o Morro do Alemão passa a ter simultaneamente 4 mil e 24 mil “barracos”, 18 mil e 122 mil moradores. Com o passar do tempo, e com esse complemento “complexo”, a diferenciação entre esses dois espaços vai se consolidando, e a cidade verá surgir um de seus maiores espaços favelados nas décadas seguintes. O que seria percebido dois anos depois da entrevista, com a escolha do “Morro do Alemão”, composto por seis favelas, para receber um diagnóstico da Prefeitura, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), junto com o Jacarezinho, dois dos maiores espaços favelados da cidade à época. | ||
= O Conjunto de favelas do Alemão = | |||
O Relatório Preliminar do ''Projeto de Desenvolvimento Social de Favelas do Rio de Janeiro'' foi produzido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) com recursos do BID, entre os anos de 1981 e 1983. O texto está organizado em três grandes áreas: socioeconômica, físico-urbanística e jurídica. Logo na apresentação do relatório, o programa faz menção ao objetivo de gerar propostas para cinco favelas do Município do Rio de Janeiro: Jacarezinho e o “Conjunto Favelado do Alemão”, composto por Morro do Alemão, Nova Brasília, Itararé e Joaquim de Queirós. E, ao longo de suas 800 páginas, o “Conjunto Favelado do Alemão” vai ser apresentado de formas distintas. | O Relatório Preliminar do ''Projeto de Desenvolvimento Social de Favelas do Rio de Janeiro'' foi produzido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) com recursos do BID, entre os anos de 1981 e 1983. O texto está organizado em três grandes áreas: socioeconômica, físico-urbanística e jurídica. Logo na apresentação do relatório, o programa faz menção ao objetivo de gerar propostas para cinco favelas do Município do Rio de Janeiro: Jacarezinho e o “Conjunto Favelado do Alemão”, composto por Morro do Alemão, Nova Brasília, Itararé e Joaquim de Queirós. E, ao longo de suas 800 páginas, o “Conjunto Favelado do Alemão” vai ser apresentado de formas distintas. | ||
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Cada órgão contratado para realizar os levantamentos fez referência à região estudada de maneira mais ou menos regular, mas diferente um do outro; contudo, há variações na forma de apresentar o objeto “Alemão” internamente aos textos de cada um deles. Isto é, ainda que este seja um projeto de diagnóstico unificado, produzido a partir de dimensões distintas, não houve um esforço em unificar as noções utilizadas ou de se estabelecer previamente o que cada um desses órgãos deveria considerar como Complexo do Alemão, de modo que, cada área definiu-o segundo os parâmetros de suas pesquisas. | Cada órgão contratado para realizar os levantamentos fez referência à região estudada de maneira mais ou menos regular, mas diferente um do outro; contudo, há variações na forma de apresentar o objeto “Alemão” internamente aos textos de cada um deles. Isto é, ainda que este seja um projeto de diagnóstico unificado, produzido a partir de dimensões distintas, não houve um esforço em unificar as noções utilizadas ou de se estabelecer previamente o que cada um desses órgãos deveria considerar como Complexo do Alemão, de modo que, cada área definiu-o segundo os parâmetros de suas pesquisas. | ||
Isso pode ser percebido logo nos textos de apresentação de cada setor: no levantamento socioeconômico, faz-se referência ao “Conjunto do Alemão”; a área jurídica ao “Complexo do Alemão”; e o Iplanrio, responsável pelas informações físico-urbanísticas, faz menção às “favelas do Morro do Alemão”. E, quando na análise dos dados levantados, muitas outras enunciações surgem. Apenas, a título de ilustração, na caracterização físico-urbanística da área, os termos utilizados foram “Favelas do Morro do Alemão” e “área favelada do Morro do Alemão”. Nesta seção, marca-se muito a ideia do “Morro do Alemão”, conferindo-lhe uma centralidade em torno da qual, outras favelas teriam se desenvolvido. Por isso as expressões utilizadas mantêm a ideia de “morro”. Inclusive, há uma menção ao “verdadeiro morro do Alemão”. | Isso pode ser percebido logo nos textos de apresentação de cada setor: no levantamento socioeconômico, faz-se referência ao “Conjunto do Alemão”; a área jurídica ao “Complexo do Alemão”; e o Iplanrio, responsável pelas informações físico-urbanísticas, faz menção às “favelas do Morro do Alemão”. E, quando na análise dos dados levantados, muitas outras enunciações surgem. Apenas, a título de ilustração, na caracterização físico-urbanística da área, os termos utilizados foram “Favelas do Morro do Alemão” e “área favelada do Morro do Alemão”. Nesta seção, marca-se muito a ideia do “Morro do Alemão”, conferindo-lhe uma centralidade em torno da qual, outras favelas teriam se desenvolvido. Por isso as expressões utilizadas mantêm a ideia de “morro”. Inclusive, há uma menção ao “verdadeiro morro do Alemão”<ref> “A área conhecida como o verdadeiro Morro do Alemão fica à direita da Rua Joaquim de Queirós, subindo até a crista do Morro (ver foto 2). Longitudinalmente, se estende até o largo do Graciano, onde tem início o Morro dos Mineiros (setor da Favela Morro do Alemão), que atinge a cota 160, terminando nas torres da Light” (SMDS, 1983, p. 384)</ref>. | ||
A análise do relatório traz alguns dados interessantes (MATIOLLI, 2016). Primeiro, uma variação no uso da noção de “Morro do Alemão”, ora expressando todo o conjunto de favelas, ora apenas uma delas. Depois, o reconhecimento de uma nova escala territorial, o “Complexo do Alemão”, de modo que, os dados apresentados, ora dizem respeito a esta nova unidade territorial, ora às diferentes favelas que o compõem, marcando sua diferenciação interna. Essa perspectiva reconhece uma continuidade entre as favelas do Alemão, sem perder de vista a sua heterogeneidade interna. | A análise do relatório traz alguns dados interessantes (MATIOLLI, 2016). Primeiro, uma variação no uso da noção de “Morro do Alemão”, ora expressando todo o conjunto de favelas, ora apenas uma delas. Depois, o reconhecimento de uma nova escala territorial, o “Complexo do Alemão”, de modo que, os dados apresentados, ora dizem respeito a esta nova unidade territorial, ora às diferentes favelas que o compõem, marcando sua diferenciação interna. Essa perspectiva reconhece uma continuidade entre as favelas do Alemão, sem perder de vista a sua heterogeneidade interna. | ||
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Por fim, é interessante destacar a recorrência, no levantamento jurídico da expressão “Complexo do Alemão”, uma vez que essa seção foi realizada por técnicos da própria SMDS. Assim, talvez seja possível sugerir que a consolidação do uso do “Complexo” para o Alemão, e não outra das noções utilizadas ao longo do Projeto pode ser fruto de sua cristalização nas rotinas burocráticas e administrativas dessa secretaria (MATIOLLI, 2016). | Por fim, é interessante destacar a recorrência, no levantamento jurídico da expressão “Complexo do Alemão”, uma vez que essa seção foi realizada por técnicos da própria SMDS. Assim, talvez seja possível sugerir que a consolidação do uso do “Complexo” para o Alemão, e não outra das noções utilizadas ao longo do Projeto pode ser fruto de sua cristalização nas rotinas burocráticas e administrativas dessa secretaria (MATIOLLI, 2016). | ||
A delimitação geográfica e da quantidade de favelas existentes no Rio de Janeiro, tal como de sua população, se colocava como um dos grandes desafios do governo municipal no início da década de 1980. Para tentar lidar com essas questões o Iplanrio assume um papel importante na produção de dados para o Município; através dele, foi produzido um Cadastro de Favelas; neste período, também foram divulgados os dados do censo de 1980, com informações referentes às favelas; e houve uma movimentação de conciliação entre os dados do IBGE e os produzidos por esse novo quadro e saber administrativo produzidos pela Prefeitura. Neste ínterim, a ideia de que há um Complexo do Alemão, ou de Complexos de favelas, se consolida ainda mais, com a diferenciação entre “favelas isoladas” e “aglomerados de favelas” (IPLANRIO, 1984). | A delimitação geográfica e da quantidade de favelas existentes no Rio de Janeiro, tal como de sua população, se colocava como um dos grandes desafios do governo municipal no início da década de 1980. Para tentar lidar com essas questões o Iplanrio assume um papel importante na produção de dados para o Município; através dele, foi produzido um Cadastro de Favelas; neste período, também foram divulgados os dados do censo de 1980, com informações referentes às favelas; e houve uma movimentação de conciliação entre os dados do IBGE e os produzidos por esse novo quadro e saber administrativo produzidos pela Prefeitura. Neste ínterim, a ideia de que há um Complexo do Alemão, ou de Complexos de favelas, se consolida ainda mais, com a diferenciação entre “favelas isoladas” e “aglomerados de favelas” (IPLANRIO, 1984)<ref>Ver o verbete https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Complexos_de_Favelas, neste dicionário.</ref>. | ||
= A XXIX Região Administrativa - Complexo do Alemão = | |||
Saturnino Braga foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro eleito diretamente depois do fim a ditadura civil-militar. Uma de suas iniciativas mais marcantes foi a criação de Regiões Administrativas nas quatro maiores áreas faveladas da cidade: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. E a eleição para os administradores regionais do município. | Saturnino Braga foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro eleito diretamente depois do fim a ditadura civil-militar. Uma de suas iniciativas mais marcantes foi a criação de Regiões Administrativas nas quatro maiores áreas faveladas da cidade: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. E a eleição para os administradores regionais do município. | ||
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Como aponta carta, o Complexo do Alemão, quando ganha sua Região Administrativa, surge composto por sete favelas (ao menos aquelas com associação de moradores), as seis que assinam a carta mais o Morro do Adeus, representado pela própria Mariza. Este, junto com a Baiana, não são contíguos às quatro favelas que compunham, inicialmente, o espaço do Complexo do Alemão, tal como definidos nos estudos e documentos oficiais analisados anteriormente; todavia, são próximos, separados do restante do Alemão, apenas pela Estrada do Itararé, o que pode ter contribuído para sua inserção na área da nova Região Administrativa, o que viria viabilizar, inclusive, a candidatura de Mariza. | Como aponta carta, o Complexo do Alemão, quando ganha sua Região Administrativa, surge composto por sete favelas (ao menos aquelas com associação de moradores), as seis que assinam a carta mais o Morro do Adeus, representado pela própria Mariza. Este, junto com a Baiana, não são contíguos às quatro favelas que compunham, inicialmente, o espaço do Complexo do Alemão, tal como definidos nos estudos e documentos oficiais analisados anteriormente; todavia, são próximos, separados do restante do Alemão, apenas pela Estrada do Itararé, o que pode ter contribuído para sua inserção na área da nova Região Administrativa, o que viria viabilizar, inclusive, a candidatura de Mariza. | ||
Esta “Carta de Apoio” surge como o primeiro registro de uma articulação de organizações sociais em torno de uma nova escala de pertencimento.. Movimentos políticos posteriores na região do bairro, da década de 1990 em diante, como a luta pela implantação do Conselho de Saúde do Complexo do Alemão (CONSA), o Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia (CDLSM) ou o mais recente o Juntos Pelo Complexo do Alemão, parecem ter tido como embrião essa carta, na qual representantes de distintas associações dialogam em prol do Complexo do Alemão. | Esta “Carta de Apoio” surge como o primeiro registro de uma articulação de organizações sociais em torno de uma nova escala de pertencimento.. Movimentos políticos posteriores na região do bairro, da década de 1990 em diante, como a luta pela implantação do Conselho de Saúde do Complexo do Alemão (CONSA), o Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia (CDLSM) ou o mais recente o Juntos Pelo Complexo do Alemão, parecem ter tido como embrião essa carta, na qual representantes de distintas associações dialogam em prol do Complexo do Alemão. | ||
= Da década de 1990 pra cá = | |||
Como pode ser visto no verbete “complexos” deste dicionário, um dos desdobramos da criação dessas novas Regiões Administrativas nas grandes áreas faveladas da cidade, foi a criação dos bairros homônimos: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. Mas, também, a exclusão das favelas pertencentes aos espaços considerados como Complexos das obras do Programa Favela-Bairro, por serem tomadas como grandes favelas. As quais seriam contempladas, posteriormente, como Planos de Desenvolvimento Urbanísticos específicos, por conta de suas dimensões e complexidades. O PDU que foi desenvolvido para o Complexo do alemão foi base para o desenvolvimento do projeto que será financiado, no final da década de 2000, pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). | Como pode ser visto no verbete “complexos” deste dicionário, um dos desdobramos da criação dessas novas Regiões Administrativas nas grandes áreas faveladas da cidade, foi a criação dos bairros homônimos: Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. Mas, também, a exclusão das favelas pertencentes aos espaços considerados como Complexos das obras do Programa Favela-Bairro, por serem tomadas como grandes favelas. As quais seriam contempladas, posteriormente, como Planos de Desenvolvimento Urbanísticos específicos, por conta de suas dimensões e complexidades. O PDU que foi desenvolvido para o Complexo do alemão foi base para o desenvolvimento do projeto que será financiado, no final da década de 2000, pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). | ||
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''"Um grupo formado por moradores, que atuam informal ou institucionalmente no Complexo, tomou a frente das ações que socorreram as famílias: identificaram moradias em risco, improvisaram abrigos e criaram uma grande mobilização para doações aos desabrigados. Constituiu-se daí o grupo Juntos pelo Complexo do Alemão, que dialogou com entidades e atores da sociedade civil e órgãos públicos, e operou especialmente através de canais informais de trocas e da rede social, em particular do facebook. O grupo Juntos pelo Complexo do Alemão foi uma dentre outras ações desenvolvidas no enfrentamento dos impactos do temporal, tendo se convertido no movimento de maior dimensão, e que tomou a frente das negociações com várias instâncias governamentais e não governamentais"'' (Calazans, Cunha e Pinheiro, 2016, pg. 3). | ''"Um grupo formado por moradores, que atuam informal ou institucionalmente no Complexo, tomou a frente das ações que socorreram as famílias: identificaram moradias em risco, improvisaram abrigos e criaram uma grande mobilização para doações aos desabrigados. Constituiu-se daí o grupo Juntos pelo Complexo do Alemão, que dialogou com entidades e atores da sociedade civil e órgãos públicos, e operou especialmente através de canais informais de trocas e da rede social, em particular do facebook. O grupo Juntos pelo Complexo do Alemão foi uma dentre outras ações desenvolvidas no enfrentamento dos impactos do temporal, tendo se convertido no movimento de maior dimensão, e que tomou a frente das negociações com várias instâncias governamentais e não governamentais"'' (Calazans, Cunha e Pinheiro, 2016, pg. 3). | ||
As chuvas tiveram efeitos localizados no interior do bairro, mas a mobilização se deu em torno do Complexo do Alemão, atraindo o apoio de algumas associações de moradores. | As chuvas tiveram efeitos localizados no interior do bairro, mas a mobilização se deu em torno do Complexo do Alemão, atraindo o apoio de algumas associações de moradores<ref> Para uma análise mais aprofundada do contexto, ver Calazans, Cunha e Pinheiro (2016) e o verbete https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Coletivo_Juntos_pelo_Complexo_do_Alem%C3%A3o:_vou_te_exigir_o_meu_lugar, neste dicionário.</ref>. | ||
Em 2015, o Juntos pelo Complexo do Alemão foi acionado novamente, mediante o contexto de recrudescimento dos conflitos armados e violência policial nos primeiros meses do ano. Uma série de ações reivindicatórias, pedindo o fim das ações truculentas da polícia, foi realizada: passeatas, um encontro com agentes governamentais na sede da ONG Viva Rio, uma audiência pública na C.A.I.C Theófilo de Souza Pinto entre outras, de modo articulado entre os diversos atores sociais, pessoas e instituições; ONGs, coletivos e mesmo associações de moradores. Uma pauta unificada, construída a partir da discussão entre 27 instituições locais, incluindo as 13 associações de moradores, foi construída no período, com cinco prioridades: a Implantação da Universidade Federal; Habitação; Saneamento Ambiental; Parque da Serra da Misericórdia e Segurança Pública. | Em 2015, o Juntos pelo Complexo do Alemão foi acionado novamente, mediante o contexto de recrudescimento dos conflitos armados e violência policial nos primeiros meses do ano. Uma série de ações reivindicatórias, pedindo o fim das ações truculentas da polícia, foi realizada: passeatas, um encontro com agentes governamentais na sede da ONG Viva Rio, uma audiência pública na C.A.I.C Theófilo de Souza Pinto entre outras, de modo articulado entre os diversos atores sociais, pessoas e instituições; ONGs, coletivos e mesmo associações de moradores. Uma pauta unificada, construída a partir da discussão entre 27 instituições locais, incluindo as 13<ref>O número de favelas que compõem o Complexo do Alemão pode ser tão indefinível, quanto seus limites físicos e número de moradores. Consideraremos o número de 13 aqui, pois faz referência ao número de associações de moradores existentes. </ref> associações de moradores, foi construída no período, com cinco prioridades: a Implantação da Universidade Federal; Habitação; Saneamento Ambiental; Parque da Serra da Misericórdia e Segurança Pública. | ||
Uma aliança tão grande torna difícil manter a sua coesão por muito tempo, entretanto, em momentos pontuais e críticos, o Complexo do Alemão se torna a escala de pertencimento acionada, agregando suas diversas organizações locais, que abrem mão de suas diferenças políticas, para uma atuação conjunta. Mesmo que momentânea. | Uma aliança tão grande torna difícil manter a sua coesão por muito tempo, entretanto, em momentos pontuais e críticos, o Complexo do Alemão se torna a escala de pertencimento acionada, agregando suas diversas organizações locais, que abrem mão de suas diferenças políticas, para uma atuação conjunta. Mesmo que momentânea. | ||
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O que vai abrir, para espíritos empreendedores do bairro, possibilidades de negócios, a partir de seus pertencimentos ao Complexo do Alemão. Esse branding do Complexo do Alemão é apropriado localmente e alimenta uma série de novos empreendimentos locais que buscam associar novos serviços e produtos à brand (marca) Complexo do Alemão. Assim, vê-se surgir uma agência de turismo, a “Turismo no Alemão”; uma marca de roupas a “complexidade urbana” (desde 2009); e mesmo de uma cerveja própria, a “Complexo do Alemão”, que pode ser encontrada no Bistrô R&R. Isso, para não falar, por falta de espaço, da apropriação da brand Alemão por circuitos do terceiro setor, do empreendedorismo social e algumas celebridades. | O que vai abrir, para espíritos empreendedores do bairro, possibilidades de negócios, a partir de seus pertencimentos ao Complexo do Alemão. Esse branding do Complexo do Alemão é apropriado localmente e alimenta uma série de novos empreendimentos locais que buscam associar novos serviços e produtos à brand (marca) Complexo do Alemão. Assim, vê-se surgir uma agência de turismo, a “Turismo no Alemão”; uma marca de roupas a “complexidade urbana” (desde 2009); e mesmo de uma cerveja própria, a “Complexo do Alemão”, que pode ser encontrada no Bistrô R&R. Isso, para não falar, por falta de espaço, da apropriação da brand Alemão por circuitos do terceiro setor, do empreendedorismo social e algumas celebridades. | ||
Com esses exemplos, não se quer aqui reforçar a força do empreendedorismo local ou romantizar a vida econômica local, mas apontar que o arraigamento local da ideia do Complexo do Alemão, pode gerar apropriações múltiplas, seja como uma brand (marca), que aciona, inclusive, laços afetivos com moradoras e moradores com seus produtos; seja como um elemento aglutinador de forças em momentos de crise, como vimos na seção anterior. Os efeitos locais da noção de “complexo” de favelas, a partir da experiência de pesquisa no Complexo do Alemão, são variados; os exemplos aqui trazidos não tem a menor pretensão de esgotar essas possibilidades, mas contribuem bastante para a construção e apresentação do argumento. | Com esses exemplos, não se quer aqui reforçar a força do empreendedorismo local ou romantizar a vida econômica local, mas apontar que o arraigamento local da ideia do Complexo do Alemão, pode gerar apropriações múltiplas, seja como uma brand (marca), que aciona, inclusive, laços afetivos com moradoras e moradores com seus produtos; seja como um elemento aglutinador de forças em momentos de crise, como vimos na seção anterior. Os efeitos locais da noção de “complexo” de favelas, a partir da experiência de pesquisa no Complexo do Alemão, são variados; os exemplos aqui trazidos não tem a menor pretensão de esgotar essas possibilidades, mas contribuem bastante para a construção e apresentação do argumento. | ||
= Pertencer ao Complexo do Alemão = | |||
Resgatando a pergunta usada como exemplo no início do verbete: “você mora ou não no Complexo do Alemão?”, podemos encerrá-lo. A resposta vai ser simples, sim ou não. Contudo, as motivações por trás dessas respostas são múltiplas, e boa parte delas, estratégica. A existência dos complexos de favelas na cidade, não tem efeitos identitários, mas se colocam como novas escalas de pertencimento à qual, suas moradoras e seus moradores poderão acionar de acordo com suas necessidades. Podem omitir, mas também podem reafirmar esse pertencimento, seja por orgulho, ou por algum interesse econômico, como vimos. | Resgatando a pergunta usada como exemplo no início do verbete: “você mora ou não no Complexo do Alemão?”, podemos encerrá-lo. A resposta vai ser simples, sim ou não. Contudo, as motivações por trás dessas respostas são múltiplas, e boa parte delas, estratégica. A existência dos complexos de favelas na cidade, não tem efeitos identitários, mas se colocam como novas escalas de pertencimento à qual, suas moradoras e seus moradores poderão acionar de acordo com suas necessidades. Podem omitir, mas também podem reafirmar esse pertencimento, seja por orgulho, ou por algum interesse econômico, como vimos. | ||
= Referências Bibliográficas = | |||
Matiolli, Thiago Oliveira Lima. O que o Complexo do Alemão nos conta sobre a cidade do Rio de Janeiro: poder e conhecimento no Rio de Janeiro no início dos anos 80. 2016. 234f. Tese de Doutorado em Ciências. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. | Matiolli, Thiago Oliveira Lima. O que o Complexo do Alemão nos conta sobre a cidade do Rio de Janeiro: poder e conhecimento no Rio de Janeiro no início dos anos 80. 2016. 234f. Tese de Doutorado em Ciências. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. | ||
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