Memórias do Morro Santa Marta: mudanças entre as edições
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<p style="margin-bottom:12.0pt; text-align:justify">'''Autor: Itamar Silva'''</p> | <p style="margin-bottom:12.0pt; text-align:justify">'''Autor: Itamar Silva'''</p> | ||
= Introdução = | = Introdução = | ||
<p style="text-align: right;"><br/> “''Morar no morro pra mim é felicidade. Eu levo a vida maior tranquilidade. No meu barraco a tristeza não mora porque lá em cima a alegria é toda hora. Não acredita, venha ver de perto o Morro é um verdadeiro paraíso aberto...''” (samba cantado pelo “Compositor” no documentário Duas Semanas no Morro - de Eduardo Coutinho - 1987)</p> <p style="text-align: right;"> </p> | <p style="text-align: right;"><br/> “''Morar no morro pra mim é felicidade. Eu levo a vida maior tranquilidade. No meu barraco a tristeza não mora porque lá em cima a alegria é toda hora. Não acredita, venha ver de perto o Morro é um verdadeiro paraíso aberto...''” (samba cantado pelo “Compositor” no documentário Duas Semanas no Morro - de Eduardo Coutinho - 1987)</p> <p style="text-align: right;"> </p> | ||
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<p style="text-align: center;">''Art. 1o – A ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO MORRO DE SANTA MARTA foi fundada em 24 de outubro de 1965,[...]''</p> <p style="text-align: center;">''Art. 2o – Pode ser reconhecido o seu nome por extenso de Associação dos Moradores do Morro de Santa Marta ou pelas siglas A.M.M.S.M.''</p> | <p style="text-align: center;">''Art. 1o – A ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO MORRO DE SANTA MARTA foi fundada em 24 de outubro de 1965,[...]''</p> <p style="text-align: center;">''Art. 2o – Pode ser reconhecido o seu nome por extenso de Associação dos Moradores do Morro de Santa Marta ou pelas siglas A.M.M.S.M.''</p> | ||
E também ofereço a leitura do Decreto 28674/07 | Decreto no 28674 de 12 de novembro de 2007 do Rio de janeiro: | E também ofereço a leitura do Decreto 28674/07 | Decreto no 28674 de 12 de novembro de 2007 do Rio de janeiro: | ||
<p style="text-align: center;">''O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, no uso das atribuições legais e, CONSIDERANDO que a confusão a respeito dos nomes surgiu em função do Mirante Dona Marta, ponto turístico no cume do morro;''</p> <p style="text-align: center;">''CONSIDERANDO que o Morro Dona Marta foi assim chamado, em homenagem a Dona Marta Figueira de Mattos, mãe do Vigário Geral Dom Clemente José de Mattos, proprietário no século XVII, da Quinta São Clemente em Botafogo, cujas terras se estendiam até a Lagoa Rodrigo de Freitas. Nelas Dom Clemente abriu um caminho que dava acesso à Capela de São Clemente, por ele erguida, esse caminho deu origem à atual Rua São Clemente; e,''</p> <p style="text-align: center;">''CONSIDERANDO que a favela se chama Santa Marta por causa de uma imagem da Santa homônima situada dentro de uma capela na parte alta da comunidade. Essa imagem foi levada por uma antiga moradora no início do século XX. Com a chegada do Padre Veloso na década de 1930, foi construída essa pequena capela para abrigar a imagem de Santa Marta, consolidando assim o nome do local, DECRETA:''</p> <p style="text-align: center;">''“Art. 1o – Respeitando a tradição e a história, com base nas considerações deste Decreto, a nominação do morro localizado na Rua São Clemente é MORRO DONA MARTA e a comunidade local é FAVELA SANTA MARTA.''</p> <p style="text-align: center;">''Art. 2o – Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação”. ''</p> <p style="text-align: center;">''Rio de Janeiro, 13 de novembro de 2007 - 443o de Fundação da Cidade''</p> <p style="text-align: center;">''CESAR MAIA''</p> | <p style="text-align: center;">''O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, no uso das atribuições legais e, CONSIDERANDO que a confusão a respeito dos nomes surgiu em função do Mirante Dona Marta, ponto turístico no cume do morro;''</p> <p style="text-align: center;">''CONSIDERANDO que o Morro Dona Marta foi assim chamado, em homenagem a Dona Marta Figueira de Mattos, mãe do Vigário Geral Dom Clemente José de Mattos, proprietário no século XVII, da Quinta São Clemente em Botafogo, cujas terras se estendiam até a Lagoa Rodrigo de Freitas. Nelas Dom Clemente abriu um caminho que dava acesso à Capela de São Clemente, por ele erguida, esse caminho deu origem à atual Rua São Clemente; e,''</p> <p style="text-align: center;">''CONSIDERANDO que a favela se chama Santa Marta por causa de uma imagem da Santa homônima situada dentro de uma capela na parte alta da comunidade. Essa imagem foi levada por uma antiga moradora no início do século XX. Com a chegada do Padre Veloso na década de 1930, foi construída essa pequena capela para abrigar a imagem de Santa Marta, consolidando assim o nome do local, DECRETA:''</p> <p style="text-align: center;">''“Art. 1o – Respeitando a tradição e a história, com base nas considerações deste Decreto, a nominação do morro localizado na Rua São Clemente é MORRO DONA MARTA e a comunidade local é FAVELA SANTA MARTA.''</p> <p style="text-align: center;">''Art. 2o – Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação”. ''</p> <p style="text-align: center;">''Rio de Janeiro, 13 de novembro de 2007 - 443o de Fundação da Cidade''</p> <p style="text-align: center;">''CESAR MAIA''</p> <p style="text-align: center;"> </p> | ||
Então, parece-me que não pairam dúvidas sobre como deve ser chamado este local, por todos: de dentro e de fora e, principalmente, pela imprensa que tanto busca se basear em fatos. Lá se vão, no mínimo, quarenta e cinco anos desde que a opção do morador foi oficializada. Continuar chamando de dona esconde interesses que não ficam muito claros. | Então, parece-me que não pairam dúvidas sobre como deve ser chamado este local, por todos: de dentro e de fora e, principalmente, pela imprensa que tanto busca se basear em fatos. Lá se vão, no mínimo, quarenta e cinco anos desde que a opção do morador foi oficializada. Continuar chamando de "dona" esconde interesses que não ficam muito claros. | ||
Recentemente, li na imprensa carioca o depoimento de um senhor que disse conhecer este local há muitos anos e que, inclusive, teve aulas de piano com uma refugiada russa nesta favela. Vamos combinar que esse senhor não estava falando da favela Santa Marta. Realiza! Um piano de cauda e uma professora | Recentemente, li na imprensa carioca o depoimento de um senhor que disse conhecer este local há muitos anos e que, inclusive, teve aulas de piano com uma refugiada russa nesta favela. Vamos combinar que esse senhor não estava falando da favela Santa Marta. Realiza! Um piano de cauda e uma professora refugiada russa, no meio de um conjunto de casebres de madeira (assim era a favela até os 70), num conjunto de moradores de maioria afrodescendentes. Certamente não passariam despercebidos nem o piano e nem a professora russa. Ao longo de minha vida neste local, nunca ouvi referência a tal feito. | ||
Opiniões à parte e pelas evidências apresentadas, penso que podemos seguir chamando este local pelo seu nome de batismo: Morro de Santa Marta, conforme o estatuto da Associação, ou Favela de Santa | Opiniões à parte e pelas evidências apresentadas, penso que podemos seguir chamando este local pelo seu nome de batismo: Morro de Santa Marta, conforme o estatuto da Associação, ou Favela de Santa Marta, conforme decreto de 2007. | ||
Contar uma história é sempre uma ação posicionada, exige de quem a conta escolher que aspectos abordar, que personagens terão destaque, que período é mais interessante e etc... Contar a história de um lugar será sempre, aqui ou em qualquer outra parte do mundo, uma história parcial. No entanto, nem por isso menos verdadeira. Cada um apreende a realidade à sua maneira, com as suas capacidades, e a interpreta de acordo com sua percepção do mundo. Compartilho dessa reflexão porque pretendo contar a história da favela de Santa Marta, que certamente estará incompleta e carregada das minhas experiências pessoais. | Contar uma história é sempre uma ação posicionada, exige de quem a conta escolher que aspectos abordar, que personagens terão destaque, que período é mais interessante e etc... Contar a história de um lugar será sempre, aqui ou em qualquer outra parte do mundo, uma história parcial. No entanto, nem por isso menos verdadeira. Cada um apreende a realidade à sua maneira, com as suas capacidades, e a interpreta de acordo com sua percepção do mundo. Compartilho dessa reflexão porque pretendo contar a história da favela de Santa Marta, que certamente estará incompleta e carregada das minhas experiências pessoais. | ||
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Fui gerado no Santa Marta e nasci em 1956. Meus pais já viviam neste lugar havia mais ou menos um ano. Então tudo que eu sei antes dessa data é porque me foi contado pelos mais velhos, ou aprendi entrevistando outros moradores do Morro. Quando nasci, o Santa Marta já existia havia aproximadamente 18 anos. Costuma-se dizer que o Santa Marta começou a ser ocupado no final dos anos 30 (38/39). | Fui gerado no Santa Marta e nasci em 1956. Meus pais já viviam neste lugar havia mais ou menos um ano. Então tudo que eu sei antes dessa data é porque me foi contado pelos mais velhos, ou aprendi entrevistando outros moradores do Morro. Quando nasci, o Santa Marta já existia havia aproximadamente 18 anos. Costuma-se dizer que o Santa Marta começou a ser ocupado no final dos anos 30 (38/39). | ||
O Santa Marta só vai aparecer nos registros | O Santa Marta só vai aparecer nos registros oficiais no censo de 1948. No entanto, isso não nos deve espantar, a favela sempre foi sub representada nos dados oficiais da cidade. Um exemplo disso é o fato de somente na década de 80 ter passado a constar nos mapas oficiais da cidade. Bem, mas isso é outra história. | ||
Voltando ao assunto, a minha família veio de outros lugares do Rio de janeiro. Meu pai veio de Miracema e tinha parentes em Itaperuna, noroeste do Estado do Rio de janeiro, próximo a Minas. Minha mãe veio de Campos dos Goytacazes para trabalhar numa “casa de família”, em Copacabana. Parte significativa dos primeiros moradores do Santa Marta tinha essa origem: Campos, São Fidélis, Miracema, Itaperuna e cidades do Espírito Santo e de Minas Gerais. Mais tarde, no final dos anos 50, e de forma continuada a partir da década de 60, os nordestinos passaram a ser maioria no processo migratório desta favela. | Voltando ao assunto, a minha família veio de outros lugares do Rio de janeiro. Meu pai veio de Miracema e tinha parentes em Itaperuna, noroeste do Estado do Rio de janeiro, próximo a Minas. Minha mãe veio de Campos dos Goytacazes para trabalhar numa “casa de família”, em Copacabana. Parte significativa dos primeiros moradores do Santa Marta tinha essa origem: Campos, São Fidélis, Miracema, Itaperuna e cidades do Espírito Santo e de Minas Gerais. Mais tarde, no final dos anos 50, e de forma continuada a partir da década de 60, os nordestinos passaram a ser maioria no processo migratório desta favela. | ||
Meu pai trabalhava no comércio | Meu pai trabalhava no comércio Exposição Carioca, uma loja de departamentos. Nunca trabalhou em obra, o que era o ofício de muitos outros homens deste lugar. Mas tinha outra habilidade profissional: sabia consertar sapatos. Tinha em casa todos os apetrechos para tal: pé de ferro, sola, martelinho, cola especial, que tinha um cheiro muito forte, pino para colocar em salto de sapato de mulher (salto Luis XV), etc... Ele fazia esse serviço para os amigos. | ||
Outra habilidade do meu pai era cantar e gostar da boemia: ao longo de seus 80 anos formou o Trio Guanabarino, cantava boleros e samba canção. | Outra habilidade do meu pai era cantar e gostar da boemia: ao longo de seus 80 anos formou o Trio Guanabarino, cantava boleros e samba canção. | ||
Mais tarde fundou um grupo de samba, o Diamante Tinha o Saldanha, que é que vivia aqui nesse mato | <span style="background-color:#1abc9c;">Mais tarde fundou um grupo de samba, o Diamante Tinha o Saldanha, que é que vivia aqui nesse mato</span> | ||
Negro, e por m, junto com filhos e netos, criou um conjunto de pagode, o Bom Clima. | <span style="background-color:#1abc9c;">Negro, e por m, junto com filhos e netos, criou um conjunto de pagode, o Bom Clima.</span> | ||
Minha mãe sempre foi empregada doméstica. Como tantas outras mulheres do Santa Marta da sua geração, criou os filhos trabalhando em “casa da madame”. Minha mãe sempre teve muito orgulho de seu trabalho. | Minha mãe sempre foi empregada doméstica. Como tantas outras mulheres do Santa Marta da sua geração, criou os filhos trabalhando em “casa da madame”. Minha mãe sempre teve muito orgulho de seu trabalho. | ||
