Marielle Franco: mudanças entre as edições

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<p style="text-align: justify;">Como a mesma repetia, em um primeiro momento, Marielle&nbsp;não fugiu das estatísticas. Aos 19 anos tornou-se mãe de sua única&nbsp;filha, Luyara Santos. “Ser mãe na favela não é fácil”, contava Marielle, sempre narrando histórias de quando Luyara era bebê. Empurrar o carrinho pelos becos e vielas esburacados, sem saneamento básico e, principalmente, debaixo de muito tiro, eram alguns dos maiores desafios da Marielle-mãe. Luyara nasceu em uma maternidade pública, estudava em creche pública&nbsp;e viveu seus primeiros anos de vida na Maré. Aos poucos, com muito trabalho e algumas oportunidades, Marielle foi reescrevendo essa história, acessando novos caminhos e proporcionando à sua filha uma vida menos atribulada. Quando Luyara tinha por volta de 8 anos, Marielle conseguiu se formar em Ciências Sociais, passou a trabalhar diretamente com Direitos Humanos, algo que já era parte de sua vida através da militância. Assim, conseguiu pagar os estudos da filha, que se formou no Ensino Médio e, atualmente, estuda na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Muitas pessoas acreditavam que Luyara era irmã de Marielle, devido à semelhança e à relação de amizade das duas. Faziam muitas atividades juntas, mas uma das que mais gostavam eram os ensaios do Bloco Apafunk, em que Luyara tocava caixa, cantava e estava aprendendo a reger; e Marielle tocava tamborim e agogô. Mesmo com pouco tempo e uma vida muito corrida, ela não deixava de ir aos encontros semanais, ressaltando sempre que era o lugar de se divertir com a filha.</p>  
<p style="text-align: justify;">Como a mesma repetia, em um primeiro momento, Marielle&nbsp;não fugiu das estatísticas. Aos 19 anos tornou-se mãe de sua única&nbsp;filha, Luyara Santos. “Ser mãe na favela não é fácil”, contava Marielle, sempre narrando histórias de quando Luyara era bebê. Empurrar o carrinho pelos becos e vielas esburacados, sem saneamento básico e, principalmente, debaixo de muito tiro, eram alguns dos maiores desafios da Marielle-mãe. Luyara nasceu em uma maternidade pública, estudava em creche pública&nbsp;e viveu seus primeiros anos de vida na Maré. Aos poucos, com muito trabalho e algumas oportunidades, Marielle foi reescrevendo essa história, acessando novos caminhos e proporcionando à sua filha uma vida menos atribulada. Quando Luyara tinha por volta de 8 anos, Marielle conseguiu se formar em Ciências Sociais, passou a trabalhar diretamente com Direitos Humanos, algo que já era parte de sua vida através da militância. Assim, conseguiu pagar os estudos da filha, que se formou no Ensino Médio e, atualmente, estuda na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Muitas pessoas acreditavam que Luyara era irmã de Marielle, devido à semelhança e à relação de amizade das duas. Faziam muitas atividades juntas, mas uma das que mais gostavam eram os ensaios do Bloco Apafunk, em que Luyara tocava caixa, cantava e estava aprendendo a reger; e Marielle tocava tamborim e agogô. Mesmo com pouco tempo e uma vida muito corrida, ela não deixava de ir aos encontros semanais, ressaltando sempre que era o lugar de se divertir com a filha.</p>  
= <span style="font-size:large;">'''Socióloga'''</span> =
= <span style="font-size:large;">'''Socióloga'''</span> =
<p style="text-align: justify;">Em 2000, &nbsp;ainda com a filha pequena, Marielle consegue retomar os estudos e o plano &nbsp;de ingressar em uma faculdade. A jovem, então, retorna ao &nbsp;pré-vestibular comunitário no [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=O_Centro_de_Estudos_e_Ações_Solidárias_da_Maré '''Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM)'''], o qual já tinha frequentado a primeira turma e saído por conta da maternidade. Foi neste pré-vestibular que Marielle depositou suas esperanças em conquistar uma vaga na universidade e após 2 anos ingressou na universidade. &nbsp;Foi também no CEASM que a jovem conseguiu um de seus primeiros empregos, na secretaria da ONG.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">A partir de então, Marielle começa a ocupar espaços pouco acessíveis para a maioria das/os moradores de favelas e periferias da cidade. Em 2002, ingressou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde cursou Ciências Sociais com uma bolsa integral obtida pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Enfrentou a dupla e tripla jornada de trabalho como grande parte das mulheres, não foi fácil conciliar os estudos com o trabalho e a maternidade. As dificuldades eram enormes, para além das questões financeiras, bem comuns ao cotidiano das classes mais baixas, sobretudo a juventude negra e periférica. Havia também a distância entre sua casa e a universidade, a precariedade e o alto preço do transporte público, a falta de políticas públicas para as mulheres mães, além do racismo cotidiano.</p> <p style="text-align: justify;">Alguns anos após se formar na graduação, Marielle queria continuar os estudos e fazer mestrado. Incentivada à época por seu companheiro, Eduardo Alves, pela família e amigas, decidiu ingressar no programa de mestrado em Administração Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2014, tornou-se mestra defendendo a dissertação intitulada "[https://wikifavelas.com.br/index.php?title=UPP_–_a_redução_da_favela_a_três_letras '''UPP - A redução da favela a três letras''']: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro". Após o assassinato de Marielle, sua família e amigas decidiram transformar sua dissertação em um livro de mesmo título.</p> <p style="text-align: justify;">A dissertação de mestrado de Marielle é fruto de uma intensa pesquisa, mas também de muita militância e experiência pessoal. O tema não foi escolhido por acaso, era resultado de sua personalidade: não se permitia viver em zona de conforto, queria se provocar o tempo todo, sem se acomodar em caminhos fáceis. Uma brilhante análise sobre a política de segurança pública implementada no estado do Rio de Janeiro entre 2008 e 2013, as Unidades de Polícia Pacificadora, alvo de tantas críticas por parte dos movimentos sociais, e ao mesmo tempo defendida com afinco por algumas parcelas da sociedade civil e representantes do Estado brasileiro.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Para Marielle Franco, o objetivo da dissertação foi demonstrar que “enquanto política de segurança pública adotada no estado do Rio de Janeiro, [as UPPs] reforçam o modelo de Estado Penal”, além de tentar “identificar se as UPPs representam uma alteração nas políticas de segurança ou se estas se confirmam como maquiagem dessas políticas”. A análise de Marielle Franco compreende os anos entre 2008 e 2013, com foco na perspectiva das favelas, em especial a Favela da Maré, onde o Estado Penal, influenciado pelo acirramento do neoliberalismo, ainda segundo a autora, usa o discurso da ‘insegurança social’ e “aplica uma política voltada para repressão e controle dos pobres”.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Ainda segundo Marielle, “o cerco militarista nas favelas e o processo crescente de encarceramento, no seu sentido mais amplo” eram representativos do contexto de implementação das UPPs. Elas, portanto, se apresentam como uma política que fortalece o Estado Penal para “conter os insatisfeitos ou ‘excluídos’ do processo, formados por uma quantidade significativa de pobres, cada vez mais colocados nos guetos das cidades e nas prisões”.</p> <p style="text-align: justify;">Enquanto pesquisava e escrevia este trabalho, Marielle Franco seguia atuando como militante defensora de Direitos Humanos. Luta a qual foi se reconhecendo a partir de sua vivência pessoal de mulher, negra e favelada. Em 2005, sua amiga Jaqueline da época do pré-vestibular, &nbsp;estudante de economia na UERJ, foi assassinada durante um tiroteio na favela. O crime aconteceu na mesma localidade onde também já havia sido morto, o menino Matheus, de apenas 7 anos, que havia saído para comprar pão. Este momento doloroso a aproximou ainda mais do debate sobre o direito à vida na favela e da segurança pública, mais tarde aprofundado em sua trajetória de militância e acadêmica, em especial no mestrado, e da construção da campanha contra o caveirão, no mesmo ano.</p> <p style="text-align: justify;">Marielle tinha a consciência da importância da ocupação de cada um dos espaços até onde chegou em sua trajetória, ela costumava dizer que ocupar a política é fundamental para reduzir as desigualdades que nos cercam e foi o que ela fez de diferentes formas em toda a sua trajetória.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Em 2006, participou da campanha que elegeu Marcelo Freixo à deputado estadual do Rio de Janeiro. Desde o primeiro mandato de Freixo, Marielle atuou como assessora parlamentar. Entre as ações desenvolvidas por ela, estava a constante articulação com diversos movimentos sociais, desde o movimento feminista, aos movimentos de favelas e de cultura. Um exemplo foi sua atuação durante o processo de aprovação da Lei 5543/2009, conhecida como Lei Funk é Cultura, que define o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Atuou também &nbsp;como coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDDHC/Alerj), presidida por Marcelo Freixo. Marielle se tornou referência no atendimento às violações aos direitos humanos no Rio de Janeiro e seu telefone um dos mais acionados nestas situações. O que não deixou de acontecer quando se tornou vereadora.</p> <p style="text-align: justify;">Na CDDHC/Alerj, Marielle passou a deixar sua marca e imprimir uma nova estratégia diante dos desafios colocados para a esquerda do Rio de Janeiro. Seu olhar para a favela era nítido e uma característica evidente de sua atuação, mas ela não aceitava ficar nesta “zona de conforto”. Foi então que ela passou a dar uma atenção especial não somente às vítimas de violações de Direitos Humanos, mas também às mães e familiares de vítimas de violência do Estado e, posteriormente, aos policiais e agentes de segurança pública vítimas de violações.&nbsp;<br/> &nbsp;<br/> <span style="font-size:large;">'''Mulher'''</span></p> <p style="text-align: justify;">Em sua vida de jovem favelada, como a mesma gostava de reivindicar, Marielle já questionava a limitação de acesso das mulheres aos espaços, quando por exemplo, pegou a bola de garotos que não queriam deixar sua irmã Anielle jogar porque era mulher. Tinha consciência de que podemos ocupar os lugares que quisermos, de “garota furacão” ao “corredor dos bailes, exemplos que citava a partir de sua própria vivência.</p> <p style="text-align: justify;">No entanto, é a partir da maternidade, que sua consciência sobre o que é ser mulher em nossa&nbsp;sociedade aumenta, seja pela vivência da negação ao direito da licença maternidade, uma vez que a mesma retorna ao trabalho como recreadora de uma creche infantil da prefeitura do Rio de Janeiro, quando sua filha ainda tinha apenas três meses de vida; a sobrecarga materna, por ser praticamente a única responsável pelos cuidados com sua filha e casa; e, posteriormente, a vivência da criação da filha sem a presença do pai.</p> <p style="text-align: justify;">A vivência de sua sexualidade, também a levou &nbsp;a questionar os padrões heteronormativos impostos às mulheres, ao se apaixonar por Mônica Benício, mulher com quem se relacionou durante vários momentos da vida. Mônica e Marielle&nbsp;se conheceram ainda na juventude, na Maré, e enfrentaram diversas &nbsp;barreiras e &nbsp;muitas mudanças em suas vidas, até vivenciarem seu relacionamento publicamente. Momento que coincidiu com o processo eleitoral e que posteriormente refletiu em sua atuação parlamentar, com grande atuação na pauta LGBT.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Em sua &nbsp;trajetória de militância, Marielle também se aproximou de diferentes formas e momentos dos movimentos feministas. Participando de atividades em instituições como CRIOLA e Casa da Mulher Trabalhadora (CAMTRA), de articulações como o Fórum Estadual de Enfrentamento à violência contra as Mulheres (FEM) e da Organização Mulheres de Atitude de Manguinhos. Como assessora parlamentar, Marielle atuava como articuladora entre o movimento feminista e o mandatos, ajudando a garantir a participação das mulheres nos debates sobre projetos de lei que envolviam os &nbsp;direitos das mulheres ou os ameaçavam.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Já em sua atuação como vereadora, Marielle ressaltava a importância da articulação dos diversos movimentos feministas, como constantemente afirmava “das feministas históricas às feministas das hashtags”, o que não se limitou a mera retórica. Durante seu mandato, todas as ações parlamentares referentes aos direitos das mulheres foram realizadas em articulação e/ou consulta aos mais diversos movimentos feministas, de mulheres lésbicas, negras, jovens, instituições e militantes históricas com atuação nas pautas do enfrentamento à violência contra as mulheres, saúde sexual e saúde reprodutiva, entre outros.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Algumas das construções mais emblemáticas foram&nbsp;a construção do Projeto de Lei pela garantia do atendimento aos casos de aborto legal na cidade do Rio de Janeiro, construído em articulação e consultas&nbsp;com diversas organizações e referências do movimento feminista e de saúde do Rio de Janeiro, apresentado no primeiro dia de sua legislatura; e do Projeto de Lei que tornava o Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto) uma data oficial do calendário municipal. Mesmo não aprovado, as articulações em torno do PL impulsionaram a construção da Frente Lésbica do Rio de Janeiro. Reprovado por apenas dois votos de diferença, foi o projeto com temática LGBT que chegou mais perto de ser aprovado na Câmara municipal do Rio de Janeiro.</p>  
<p style="text-align: justify;">Em 2000, &nbsp;ainda com a filha pequena, Marielle consegue retomar os estudos e o plano &nbsp;de ingressar em uma faculdade. A jovem, então, retorna ao &nbsp;pré-vestibular comunitário no [https://wikifavelas.com.br/index.php?title=O_Centro_de_Estudos_e_Ações_Solidárias_da_Maré '''Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM)'''], o qual já tinha frequentado a primeira turma e saído por conta da maternidade. Foi neste pré-vestibular que Marielle depositou suas esperanças em conquistar uma vaga na universidade e após 2 anos ingressou na universidade. Foi também no CEASM que a jovem conseguiu um de seus primeiros empregos, na secretaria da ONG.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">A partir de então, Marielle começa a ocupar espaços pouco acessíveis para a maioria das/os moradores de favelas e periferias da cidade. Em 2002, ingressou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde cursou Ciências Sociais com uma bolsa integral obtida pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Enfrentou a dupla e tripla jornada de trabalho como grande parte das mulheres, não foi fácil conciliar os estudos com o trabalho e a maternidade. As dificuldades eram enormes, para além das questões financeiras, bem comuns ao cotidiano das classes mais baixas, sobretudo a juventude negra e periférica. Havia também a distância entre sua casa e a universidade, a precariedade e o alto preço do transporte público, a falta de políticas públicas para as mulheres mães, além do racismo cotidiano.</p> <p style="text-align: justify;">Alguns anos após se formar na graduação, Marielle queria continuar os estudos e fazer mestrado. Incentivada à época por seu companheiro, Eduardo Alves, pela família e amigas, decidiu ingressar no programa de mestrado em Administração Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2014, tornou-se mestra defendendo a dissertação intitulada "[https://wikifavelas.com.br/index.php?title=UPP_–_a_redução_da_favela_a_três_letras '''UPP - A redução da favela a três letras''']: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro". Após o assassinato de Marielle, sua família e amigas decidiram transformar sua dissertação em um livro de mesmo título.</p> <p style="text-align: justify;">A dissertação de mestrado de Marielle é fruto de uma intensa pesquisa, mas também de muita militância e experiência pessoal. O tema não foi escolhido por acaso, era resultado de sua personalidade: não se permitia viver em zona de conforto, queria se provocar o tempo todo, sem se acomodar em caminhos fáceis. Uma brilhante análise sobre a política de segurança pública implementada no estado do Rio de Janeiro entre 2008 e 2013, as Unidades de Polícia Pacificadora, alvo de tantas críticas por parte dos movimentos sociais, e ao mesmo tempo defendida com afinco por algumas parcelas da sociedade civil e representantes do Estado brasileiro.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Para Marielle Franco, o objetivo da dissertação foi demonstrar que “enquanto política de segurança pública adotada no estado do Rio de Janeiro, [as UPPs] reforçam o modelo de Estado Penal”, além de tentar “identificar se as UPPs representam uma alteração nas políticas de segurança ou se estas se confirmam como maquiagem dessas políticas”. A análise de Marielle Franco compreende os anos entre 2008 e 2013, com foco na perspectiva das favelas, em especial a Favela da Maré, onde o Estado Penal, influenciado pelo acirramento do neoliberalismo, ainda segundo a autora, usa o discurso da ‘insegurança social’ e “aplica uma política voltada para repressão e controle dos pobres”.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Ainda segundo Marielle, “o cerco militarista nas favelas e o processo crescente de encarceramento, no seu sentido mais amplo” eram representativos do contexto de implementação das UPPs. Elas, portanto, se apresentam como uma política que fortalece o Estado Penal para “conter os insatisfeitos ou ‘excluídos’ do processo, formados por uma quantidade significativa de pobres, cada vez mais colocados nos guetos das cidades e nas prisões”.</p> <p style="text-align: justify;">Enquanto pesquisava e escrevia este trabalho, Marielle Franco seguia atuando como militante defensora de Direitos Humanos. Luta a qual foi se reconhecendo a partir de sua vivência pessoal de mulher, negra e favelada. Em 2005, sua amiga Jaqueline da época do pré-vestibular, &nbsp;estudante de economia na UERJ, foi assassinada durante um tiroteio na favela. O crime aconteceu na mesma localidade onde também já havia sido morto, o menino Matheus, de apenas 7 anos, que havia saído para comprar pão. Este momento doloroso a aproximou ainda mais do debate sobre o direito à vida na favela e da segurança pública, mais tarde aprofundado em sua trajetória de militância e acadêmica, em especial no mestrado, e da construção da campanha contra o caveirão, no mesmo ano.</p> <p style="text-align: justify;">Marielle tinha a consciência da importância da ocupação de cada um dos espaços até onde chegou em sua trajetória, ela costumava dizer que ocupar a política é fundamental para reduzir as desigualdades que nos cercam e foi o que ela fez de diferentes formas em toda a sua trajetória.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Em 2006, participou da campanha que elegeu Marcelo Freixo à deputado estadual do Rio de Janeiro. Desde o primeiro mandato de Freixo, Marielle atuou como assessora parlamentar. Entre as ações desenvolvidas por ela, estava a constante articulação com diversos movimentos sociais, desde o movimento feminista, aos movimentos de favelas e de cultura. Um exemplo foi sua atuação durante o processo de aprovação da Lei 5543/2009, conhecida como Lei Funk é Cultura, que define o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Atuou também &nbsp;como coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDDHC/Alerj), presidida por Marcelo Freixo. Marielle se tornou referência no atendimento às violações aos direitos humanos no Rio de Janeiro e seu telefone um dos mais acionados nestas situações. O que não deixou de acontecer quando se tornou vereadora.</p> <p style="text-align: justify;">Na CDDHC/Alerj, Marielle passou a deixar sua marca e imprimir uma nova estratégia diante dos desafios colocados para a esquerda do Rio de Janeiro. Seu olhar para a favela era nítido e uma característica evidente de sua atuação, mas ela não aceitava ficar nesta “zona de conforto”. Foi então que ela passou a dar uma atenção especial não somente às vítimas de violações de Direitos Humanos, mas também às mães e familiares de vítimas de violência do Estado e, posteriormente, aos policiais e agentes de segurança pública vítimas de violações.&nbsp;<br/> &nbsp;<br/> <span style="font-size:large;">'''Mulher'''</span></p> <p style="text-align: justify;">Em sua vida de jovem favelada, como a mesma gostava de reivindicar, Marielle já questionava a limitação de acesso das mulheres aos espaços, quando por exemplo, pegou a bola de garotos que não queriam deixar sua irmã Anielle jogar porque era mulher. Tinha consciência de que podemos ocupar os lugares que quisermos, de “garota furacão” ao “corredor dos bailes, exemplos que citava a partir de sua própria vivência.</p> <p style="text-align: justify;">No entanto, é a partir da maternidade, que sua consciência sobre o que é ser mulher em nossa&nbsp;sociedade aumenta, seja pela vivência da negação ao direito da licença maternidade, uma vez que a mesma retorna ao trabalho como recreadora de uma creche infantil da prefeitura do Rio de Janeiro, quando sua filha ainda tinha apenas três meses de vida; a sobrecarga materna, por ser praticamente a única responsável pelos cuidados com sua filha e casa; e, posteriormente, a vivência da criação da filha sem a presença do pai.</p> <p style="text-align: justify;">A vivência de sua sexualidade, também a levou &nbsp;a questionar os padrões heteronormativos impostos às mulheres, ao se apaixonar por Mônica Benício, mulher com quem se relacionou durante vários momentos da vida. Mônica e Marielle&nbsp;se conheceram ainda na juventude, na Maré, e enfrentaram diversas &nbsp;barreiras e &nbsp;muitas mudanças em suas vidas, até vivenciarem seu relacionamento publicamente. Momento que coincidiu com o processo eleitoral e que posteriormente refletiu em sua atuação parlamentar, com grande atuação na pauta LGBT.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Em sua &nbsp;trajetória de militância, Marielle também se aproximou de diferentes formas e momentos dos movimentos feministas. Participando de atividades em instituições como CRIOLA e Casa da Mulher Trabalhadora (CAMTRA), de articulações como o Fórum Estadual de Enfrentamento à violência contra as Mulheres (FEM) e da Organização Mulheres de Atitude de Manguinhos. Como assessora parlamentar, Marielle atuava como articuladora entre o movimento feminista e o mandatos, ajudando a garantir a participação das mulheres nos debates sobre projetos de lei que envolviam os &nbsp;direitos das mulheres ou os ameaçavam.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Já em sua atuação como vereadora, Marielle ressaltava a importância da articulação dos diversos movimentos feministas, como constantemente afirmava “das feministas históricas às feministas das hashtags”, o que não se limitou a mera retórica. Durante seu mandato, todas as ações parlamentares referentes aos direitos das mulheres foram realizadas em articulação e/ou consulta aos mais diversos movimentos feministas, de mulheres lésbicas, negras, jovens, instituições e militantes históricas com atuação nas pautas do enfrentamento à violência contra as mulheres, saúde sexual e saúde reprodutiva, entre outros.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Algumas das construções mais emblemáticas foram&nbsp;a construção do Projeto de Lei pela garantia do atendimento aos casos de aborto legal na cidade do Rio de Janeiro, construído em articulação e consultas&nbsp;com diversas organizações e referências do movimento feminista e de saúde do Rio de Janeiro, apresentado no primeiro dia de sua legislatura; e do Projeto de Lei que tornava o Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto) uma data oficial do calendário municipal. Mesmo não aprovado, as articulações em torno do PL impulsionaram a construção da Frente Lésbica do Rio de Janeiro. Reprovado por apenas dois votos de diferença, foi o projeto com temática LGBT que chegou mais perto de ser aprovado na Câmara municipal do Rio de Janeiro.</p>  
= <span style="font-size:large;">'''Negra'''</span> =
= <span style="font-size:large;">'''Negra'''</span> =
<p style="text-align: justify;">Marielle afirmava que antes de se reconhecer como mulher negra, ela tinha já tinha a identidade de favelada. É assim que ela chega a PUC, e como toda uma geração de juventude negra que acessou à universidade nas últimas décadas, nesse espaço que se aprofunda o reconhecimento e auto-afirmação de sua negritude e identidade de mulher negra. Sendo determinantes nesse processo, os debates sobre a invisibilidade das trajetórias negras. A mesma afirmava o quanto tinha sido importante para ela descobrir que Lélia Gonzalez havia sido diretora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, no qual ela estudava.</p> <p style="text-align: justify;">Esse lugar da referência de mulheres negras passa a ser uma constante em sua trajetória, estando várias delas entre suas preferências de leitura. Angela Davis, a qual ela tinha tanta vontade de conhecer e Conceição Evaristo, a quem teve a oportunidade de homenagear com a Medalha Pedro Ernesto, a maior honraria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eram algumas de suas escritoras favoritas. Com a execução política de Marielle, ela que passa a ser referência para as suas referências e para gerações de mulheres negras, mais velhas e mais jovens que ela.</p> <p style="text-align: justify;">Antes, Marielle já inspirava muitas mulheres negras, em especial as jovens, que desde sua campanha não perdiam a oportunidade de abordar Marielle nas ruas, em atos, manifestações ou mesmo no dia a dia, para pedir fotos e falar o quanto se sentiam representadas por ela. Não foram poucas as que, ao serem atendidas por Marielle na Comissão de Defesa da Mulher da Câmara Municipal, tinham um olhar de identificação.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Esse processo de auto-afirmação de sua identidade negra passa a ser também visualmente identificado em seu corpo, através de seu cabelo (em que ela parou de aplicar químicas conhecidas como “relaxamento” em 2015), roupas e turbantes. A referência à ancestralidade e a representatividade também se torna central e ficam cada vez mais presentes em seu discurso e prática. Marielle reiterava constantemente que não se poderia esperar mais 10 anos para a eleição de outra mulher negra na Câmara do Rio de Janeiro com pautas progressistas, fazendo referência ao período entre as eleições de Benedita da Silva (1982), Jurema Batista (1992) e sua própria eleição (2016).</p>  
<p style="text-align: justify;">Marielle afirmava que antes de se reconhecer como mulher negra, ela tinha já tinha a identidade de favelada. É assim que ela chega a PUC, e como toda uma geração de juventude negra que acessou à universidade nas últimas décadas, nesse espaço que se aprofunda o reconhecimento e auto-afirmação de sua negritude e identidade de mulher negra. Sendo determinantes nesse processo, os debates sobre a invisibilidade das trajetórias negras. A mesma afirmava o quanto tinha sido importante para ela descobrir que Lélia Gonzalez havia sido diretora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, no qual ela estudava.</p> <p style="text-align: justify;">Esse lugar da referência de mulheres negras passa a ser uma constante em sua trajetória, estando várias delas entre suas preferências de leitura. Angela Davis, a qual ela tinha tanta vontade de conhecer e Conceição Evaristo, a quem teve a oportunidade de homenagear com a Medalha Pedro Ernesto, a maior honraria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eram algumas de suas escritoras favoritas. Com a execução política de Marielle, ela que passa a ser referência para as suas referências e para gerações de mulheres negras, mais velhas e mais jovens que ela.</p> <p style="text-align: justify;">Antes, Marielle já inspirava muitas mulheres negras, em especial as jovens, que desde sua campanha não perdiam a oportunidade de abordar Marielle nas ruas, em atos, manifestações ou mesmo no dia a dia, para pedir fotos e falar o quanto se sentiam representadas por ela. Não foram poucas as que, ao serem atendidas por Marielle na Comissão de Defesa da Mulher da Câmara Municipal, tinham um olhar de identificação.&nbsp;</p> <p style="text-align: justify;">Esse processo de auto-afirmação de sua identidade negra passa a ser também visualmente identificado em seu corpo, através de seu cabelo (em que ela parou de aplicar químicas conhecidas como “relaxamento” em 2015), roupas e turbantes. A referência à ancestralidade e a representatividade também se torna central e ficam cada vez mais presentes em seu discurso e prática. Marielle reiterava constantemente que não se poderia esperar mais 10 anos para a eleição de outra mulher negra na Câmara do Rio de Janeiro com pautas progressistas, fazendo referência ao período entre as eleições de Benedita da Silva (1982), Jurema Batista (1992) e sua própria eleição (2016).</p>